Não tenhas pressa

Não tenhas pressa. Nem que a tivesses, mas não tenhas. Nisto do luto mandamos muito pouco. Há a conveniência, a decência de ser gente entre gente, mas o que conta mesmo é algo que se passa por dentro. Por dentro do dentro, abaixo de nós, no invisível de tudo. Não tenhas pressa que hás de escrever as palavras devidas a seu tempo. Terás muitas, ou talvez não. Terás as que tiveres e serão as certas, mesmo que atabalhoadas. Não as culpes a elas, culpa o talento que não tens. A seu tempo elas virão e escreverás, como se diz por aí, "o que te vai na alma", porque para já, com o aperto da tristeza e de uma saudade avassaladora, cada palavra é um soluço incompreensível deste lado das coisas e das pessoas. Não tenhas pressa, tal como ela que agora tem todo o tempo do mundo, um jardim imenso e uma calma que na altura certa, partilharás também. Assim o esperas.

Da crença


O silêncio reinava e não era de hoje. A mudez que o acometera vinha de longe. Houvera um tempo em que aliava, por um lado, a crença de vir a realmente encontrar uma voz, com esboços de realmente vozear por outro. Hoje, resta apenas a crença como carcaça e é sabido por esse mundo fora, que uma crença por si só pode muito bem não chegar.

Do mar

A cada visita não te sobra nada a não ser uma espécie de humildade perante o mar. O teu corpo cumpre uma vénia no silêncio, uma reverência face à irreverência. Sabes que o mar é da mesma massa dos astros e dos confins do universo, do mesmo mistério que as partículas mais pequenas, das ondas invisíveis e etéreas. Tens olhos e alma não tens? Então.


Da decapitação das árvores

A sombra, o verde, a presença eterna de um aconchego, a morte de pé, os pássaros, as folhas, o símbolo do abrigo mais antigo, o exemplo da força de alcançar o céu, tudo isso são as árvores. Decapitas pelo mau tempo, fica a certeza de que outras virão ou até as mesmas retomarão o trabalho de anos em que a seiva teima em brotar e bater-se teimosamente contra a gravidade. Saber que o seu corpo dá para eternizar um amor, cravando na pele, tatuado na madeira para o sempre que for possível.







Torradas

As torradas dos cafés daqui são pedaços de um conforto poético. Pão de forma, dois andares, cortados em três fatias verticais cada um. Começo pelas fatias das pontas, trincando a côdea tostada antes de mergulhar no miolo embebido em manteiga. Deixo as duas fatias do meio para o fim, onde são elas toda manteiga derretida. É assim mesmo, bocados de prazer dourados, húmidos e quentes. O Homem não precisa de muito para sorrir. 

Das leituras

É sabido que a ambição de ler todos os livros da biblioteca que tenho é, tão só, uma mania. A cada livro novo que compro, empurro centenas de páginas para o silêncio provável das minhas não leituras. Ler não é uma escolha, é algo mais próximo do alinhamento dos astros e das matemáticas que isso envolve.

Lendo


Terminada esta primeira aventura com a poesia de Borges.


A minha humanidade está em sentir que somos vozes da mesma penúria.

Falam da pátria.
A minha pátria é um ganido de guitarra, alguns retratos e uma velha espada...



A MINHA VIDA INTEIRA

de novo aqui, com os lábios memoráveis, único e semelhante a vós.
Persisti na aproximação da ventura e na intimidade da pena.
Atravessei o mar.
Conheci muitas terras; vi uma mulher e dois ou três homens.
Amei uma menina altiva e branca e de uma hispânica serenidade.
Vi um arrabalde infinito onde se cumpre uma insaciada imortalidade de poentes.
Saboreei numerosas palavras.
Creio profundamente que isso é tudo e que não verei nem executarei coisas novas.
Creio que as minhas jornadas e as minhas noites
se igualam em pobreza e riqueza às de Deus e às de todos os homens.


PARA UMA RUA DO OESTE

Dar-me-ás uma alheia imortalidade, rua sozinha.
És sombra já da minha vida.
Atravessas-me as noites com a tua certa retidão de estocada.
A morte - tempestade escura e imóvel - destroçará as minhas horas.
Alguém recolherá os meus passos e usurpará a minha devoção e esta estrela.
(A distância, como um longo vento, há de flagelar o seu caminho.)
Iluminado por nobre solidão, porá o mesmo anseio no teu céu.
Pôr-lhe-á esse mesmo anseio que sou eu.
Ressurgirei no seu vindouro assombro de ser.
Em ti outra vez:
Rua dolorosamente como uma ferida te abres.


Sei que, mesmo obscuro, qualquer privilégio é da estirpe dos milagres
e grande parte dele provém desta vigília
reunida em redor do que não se conhece: do morto,
reunida para guardar e acompanhar a sua primeira noite na morte.

(O velório desgasta cada rosto;
Os olhos morrem-nos lá no alto como a Jesus.)


Porque o ventre do cemitério do Sul
foi saciado pela febre-amarela até dizer chega;

Dos detalhes

Certos detalhes brotam do cenário mais improvável. Ou, pelo menos, dos momentos mais improváveis, como por exemplo, esperares um autocarro enquanto ouves rádio, e uma mãe a puxar a camisola da filha para baixo, impedindo que o frio lhe trepasse pelo fundo das costas acima. Um gesto que dava todo um tratado sobre a maternidade.
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O homem que escrevia nada

Havia um homem que escrevia nada. Publicou um livro no qual não escrevia nada. Foi entrevistado e perguntaram-lhe para que escrevia. Respondeu que escrevia para dizer nada. O entrevistador, arreliado, argumentou que para não escrever nada teve, ainda assim, de escrever alguma coisa e que a prova estava no livro publicado com palavras lá metidas. Respondeu o homem: "Pois, são as vicissitudes da escrita".

o conjunto de conhecimentos fundados sobre princípios incertos

vais escrevendo as palavras que te calharam, vais dizendo os silêncios que te nasceram, vais calando os gestos que se te desenham, porque tudo é um lento roer de notas numa guitarra que chora um blues e que inunda a sala, a sala vazia dela enquanto não chega e que com ela te trará de volta também
vais-te escrevendo nas palavras em que calhaste, nas palavras em que tropeçaste, tu trapalhão que és nisto de dizeres aquelas coisas que julgas teres para dizer, sabendo, à partida que o que te cabe dizer foi já dito antes de ti, antes disto e, mais ainda, foi dito para lá de ti, disto e daquilo
sabes, por fim, que o dicionário diz que a ciência é o conjunto de conhecimentos fundados sobre princípios certos, o que faz com que chegues à conclusão deliciosa que amar é o conjunto de conhecimentos fundados sobre princípios incertos
sabendo isso, não precisas de saber mais nada

Lendo


Continuo a leitura de Borges. O verdadeiramente extraordinário da poesia dele, é a sensibilidade extrema que consegue transmitir através das mais simples frases. Borges, com associações de ideias aparentemente banais, leva-me ao desfrutar incondicional de cada verso.



Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.




Na sala tão severa, como cegos,
procuram-se uma à outra as nossas solidões.
sobreviveu à tarde
a brancura gloriosa da tua carne.
No nosso amor há uma pena
parecida com a alma.

Tu
que ainda ontem eras só toda a beleza
és agora também todo o amor.



Definitiva como um mármore,
a tua ausência irá entristecer outras tardes.


A casa da avó

A casa da avó. Velhinha, a casa e a avó. Fez 93 anos no dia 1, a avó, a casa não sei quantos anos terá. Sei que já teve várias árvores à frente, foram morrendo de pé. Plantaram-se outras, está lá agora uma, magrinha e novinha, despida de Inverno.
A casa era do avô também. E era a casa de muitas tardes de férias entre pães com manteiga, leite achocolatado, primos e uma bola de futebol.
Não é a casa dos meus sonhos, é uma casa de sonho, cujas traseiras escondem uma passagem até ao mar. E é curioso que a passagem é uma ilha perdida numa viela ladeada de muros e musgo onde os gatos se esgueiram. É uma casa onde da casa-de-banho, se se for homem, vê-se o Gilreu a batalhar o Atlântico enquanto se faz aquilo que ninguém pode fazer por nós.
Mora lá a minha avó, velhinha, no quarto de cima, um quarto semeado de fotografias do marido, dos filhos, dos netos, da mãe, dos dela, dos meus, dos nossos.
Fez 93 anos no primeiro dia do ano.
 
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