Suponho que uma ilha, seja ela qual for, nos obriga forçosamente a duas coisas: primeiramente olhar para fora dela, para o mar, horizonte, escarpas e areal que a rodeiam e todo esse chamamento de fuga, de esvoaçar, de embarcar.
E depois, também, olhar para dentro dela, para o ventre, o âmago, a selva se a tiver ou os vulcões se lhos calhar, como é este o caso, para essa terra esventrada, cicatrizada, essa terra do avesso. A alma vinda ao de cima. Eis Lanzarote.
Sim, o solo lunar ou marciano, queimado, petrificado, chagado, mas também o azul profundo do mar ou o azul alado do céu e o seu correr sereno e teimoso de novelos de nuvem branca. Sim, um correr de pequenas outras ilhas de algodão lá no alto, porque em Lanzarote há sempre um vento quase Norte, meio Norte. Não muito forte é certo, mas tão pouco manso.
A ilha é a lição da maior violência de todas: o tempo. O tempo, esse, é a maior das violências, a maior calamidade, a maior hecatombe e esta ilha o comprova com todos os seus vulcões adormecidos dizem. Vulcões, alguns com poucos séculos e uma terra que brotou há milhões de anos do fundo do oceano com os seus mares de lava agora estagnada, feita pedra, mas que ainda revolve como as ondas sob o efeito da luz e das sombras.
Sabia duas coisas sobre Lanzarote: isso dos vulcões e Saramago. Descobri uma terceira: César Manrique. Sim, a ilha é feita das cinzas do fogo profundo do planeta, e sim, foi a casa do escritor português nos seus últimos anos de vida. Mas é também a ilha desse artista visionário. É graças a ele que em Lanzarote existe apenas um edifício com mais de 4 andares, todo o restante urbanismo vive em perfeitamente harmonia com a paisagem. Como arquitecto todas as intervenções que fez respeitam o ambiente onde se inserem e criam uma experiência que, para mim, foi uma das mais belas descobertas que fiz.Um pequeno exemplo: na Fundação com o seu nome, uma casa montada sobre e sob uma corrente de lava negra, há uma janela em vidro cuja vista vai precisamente até ao alto do vulcão de onde essa corrente desce. Seguindo o olhar lá do cimo, acompanhando essa cicatriz negra de lava até mesmo junto da janela e dá-se o milagre, o génio: parte dessa onda entra pelo vidro e avança já dentro da sala uns metros. A fotografia não faz o jus devido à obra, mas garanto que é de uma sensibilidade extrema esse momento mágico.
E o Mirador del Rio, e as Cueva de los Verdes, os Jameos de Agua e as suas piscinas azuis e brancas, o Jardim dos Cactus, o monumento ao Camponês e uma série de detalhes que em mim ficam para sempre.
Teguise e o seu mercado, a Graciosa, pequena ilha ao largo de Lanzarote que visitei e onde dei o primeiro mergulho nesses mares, numa praia cujo o cenário mais um vulcão erguia ao longe, e suas ruas de terra e suas portas coloridas, a praia do Papagaio onde comi lapas numa escarpa ladeada de duas praias, e a Lira comigo e eu no seu alcance e uma Lua ainda de tarde com o céu mais que azul. As vinhas rentes ao chão, escondendo-se do vento.
E Saramago claro, o seu reduto, os detalhes de uma casa que foi um ninho, a carpete de pedra na entrada, a oliveira que trouxe de Portugal e uma cadeira no jardim com vista para o mar e o silêncio.
E, pois claro, o mais impressionante, a Montanha de Fogo no Parque de Timanfaya, um jardim de vulcões, de deserto, de terras negras, vermelhas e douradas, de um lugar onde a terra sangrou fogo e tudo incendiou à volta. Um lugar que como disse Saramago, nunca ninguém visitará como deseja, isto é, só, mas cuja a tatuagem me ficará na alma até ao fim, porque é disso de que se trata, como o tal de Hilário que habitou essas montanhas de lume durante 50 anos apenas com um camelo como companhia, é disso mesmo de que se trata, de rendição perante a vertigem de uma paisagem e tudo o que ela nos traz ao de cima.
Como um vulcão.