como quem ama

o primeiro passo será perceberes que não são tuas
as palavras
são furtivas, sedutoras, esquivas
que se insinuam, que se oferecem e desoferecem facilmente
que como quando se olha o sol menos se vê
quanto mais as agarramos mais se nos fogem

o segundo passo terá forçosamente de ser o da humildade, da rendição
mesmo se a grande a lição que as palavras te dão
são a da liberdade, da tenecidade, do inconformismo

no fundo, há que mergulhar num mundo de antonímia
de conviver com o paradoxo

como quem ama.

liberdade, igualdade, fraternidade

da alma para Paris

queres ser fraterno
poder comungar com o próximo ou com alguém mais distante mas que te calhou no caminho
sabê-lo a ele e dares-te a provar também,
 
queres ser igual
para poderes ser diferente, aceitar, compreender, crescer
colher sapiência e paz no lento caminhar para longe da ignorância,
 
queres ser livre
estar em silêncio ou em uníssono na sinfonia caótica que todos somos
 
queres essa trindade
pensavas que lá por ta terem dado, tua seria sempre
 
mas ser livre, igual e fraterno exige de ti um outro triunvirato:
a defesa intransigente da tolerância, educação e dignidade.

constatação

Não duvides de que chegou o momento. E os momentos, é sabido, escapam-se dentro deles mesmos, desmoronam-se como as estrelas já cansadas de eternidade. As palavras, aquelas que te couberam dizer, anseiam por esse pulsar efémero de se revelarem, condensam em si um arrepio vindo de não se sabe bem de onde.

curvas e regaços

Tinhas estas palavras guardadas há muito tempo. Guardadas naqueles sacos de plástico onde sempre puseste as palavras que escrevias em papel, no tempo em que escrevias em papel, agora escreves por dentro, no escuro de ti, no silêncio mais profundo, no silêncio do silêncio. Tinhas, como disse, estas palavras guardadas há muito:
 
a sala adormecia nos finais de tarde, deixando pequenos rumores escondidos nos cantos. apenas a tua sombra vibrava pelas paredes, desenhando curvas e regaços.


Detalhes de Lanzarote III - A escada e a janela

César Manrique foi a verdadeira descoberta que a Lira e eu fizemos em Lanzarote. Como nunca tínhamos ouvido falar dele? Um homem cuja obra é enorme e o que ele fez naquela ilha de vulcões deveria ser um exemplo a seguir em todo o lado se quisermos deixar um mundo decente para o futuro.
Na fundação com o seu nome, criou uma casa pousada, casada, imbuída, numa torrente de lava petrificada. Fê-lo com tamanha mestria, que a casa se casa com esse rio parado, tanto à superfície com as paredes brancas, como nas bolsas subterrâneas onde aproveitou para fazer habitável o que era inóspito.
Dois detalhes de talento se me tatuaram.

Primeiro uma escada em espiral, cravada na e com a terra negra, descendo para as entranhas dessa terra, como um caracol perfeito, leve e inteligente.


E depois a janela. A imagem não faz a justiça devida a este pormenor. A queda de lava velha, vinda do topo do vulcão pela encosta abaixo, entra pela sala. A janela existe mas não existe ao mesmo tempo. Sentimo-nos no espaço. A coisa está tão bem feita que a casa parece estar lá há mais tempo que a queda de lava. O golpe de génio é esse, Manrique chegou séculos depois da erupção, mas criou algo que simula um regresso ao passado. A arte é também isso: viajar no tempo, para lá dele.

um verso nunca é solto em vão

Não resta muito mais senão escrever. Nunca restou aliás. Não se trata de abandonar o mundo, a escrita é, até, a única forma de cá ficar. O exercício não é abstrato, trata-se, de facto, de comungar. O esquecimento será a maior força de todas, no futuro, quando o universo estagnar no morno silêncio da eternidade, será o eco das palavras escritas o solitário ténue rumor resistente. Sim, mesmo esse cessará eventualmente, mas havemos de crer que um verso nunca é solto em vão.

silêncio ou nada

ir à janela ou abrir a porta para ter a certeza que o mundo ainda lá está
folhear os livros e os cadernos
abrir as gavetas
procurar os papeis que por lá andam e verificar se as palavras ainda repousam
ligar o rádio, a televisão
certificar-me de que a música e a luz ainda ondulam
procurar-te
tocar-te
para crer que existes e que o amor tem casa
lembrar-me, recordar-me para acreditar que houve passado
sonhar, iludir-me para tecer futuro
semear tato para que o desejo encontre o teu corpo e tenha razão de ser
escrever para que o cosmos se perpetue
nem que os versos sejam silêncio ou nada

Detalhes de Lanzarote II - As vinhas

Havendo constantemente um vento Norte, quase Norte, meio Norte, na Ilha, não espanta que as vinhas se escondam dele. A insistência desse sopro milenar, fez com que se erguessem pequenos muretes de pedras negras para proteger a vinha. A vinha em Lanzarote é rasteira, um arbusto. Desliza sobre o chão de cinza e estica-se rente ao solo. Filas e filas de muros pretos com folhas verdes coladas. Dizem que dali saem vinhos de uma acidez notável, como se bebessem a lava lá dos fundos e a resfriassem à superfície com essa brisa permanente e seu solo queimado.


Detalhes de Lanzarote I - Saramago

Disse ele sobre a ilha: Lanzarote não é a minha terra, mas é terra minha. Da visita à casa dele e de Pilar, relembro aqui umas pequenas coisas. É sabido que as pequenas coisas são as mais saborosas.

A carpete de pedra no hall de entrada da casa. Basáltica escura contrastando com o laranja da tijoleira. Pelos vistos, Saramago gostava muito dessa carpete.Achei o mesmo.


A vénia. Quando Saramago recebeu o Nobel, fez o que a tradição pedia, uma vénia ao Rei da Suécia que lhe entregou o prémio, e fez uma outra depois, mais significativa talvez, dirigida a Pilar, essa segunda vénia alimentava-a a mais antiga das tradições, o amor. Seguiram-se outras para os seus pares desse ano e para o público em geral, mas aquela foi especial.


a sombra do mar - ao Al Berto

ao Al Berto
 
Quando chegar o Inverno e o mar for de chumbo, tão negro será que finalmente lhe veremos a sombra. Sim, a sombra do mar derramada finalmente sobre o céu, o areal e todo a cidade. Revelada aos nossos olhos e poderás então fotografá-la como sempre o desejaste.

Lanzarote

Suponho que uma ilha, seja ela qual for, nos obriga forçosamente a duas coisas: primeiramente olhar para fora dela, para o mar, horizonte, escarpas e areal que a rodeiam e todo esse chamamento de fuga, de esvoaçar, de embarcar.


E depois, também, olhar para dentro dela, para o ventre, o âmago, a selva se a tiver ou os vulcões se lhos calhar, como é este o caso, para essa terra esventrada, cicatrizada, essa terra do avesso. A alma vinda ao de cima. Eis Lanzarote.


Sim, o solo lunar ou marciano, queimado, petrificado, chagado, mas também o azul profundo do mar ou o azul alado do céu e o seu correr sereno e teimoso de novelos de nuvem branca. Sim, um correr de pequenas outras ilhas de algodão lá no alto, porque em Lanzarote há sempre um vento quase Norte, meio Norte. Não muito forte é certo, mas tão pouco manso.


A ilha é a lição da maior violência de todas: o tempo. O tempo, esse, é a maior das violências, a maior calamidade, a maior hecatombe e esta ilha o comprova com todos os seus vulcões adormecidos dizem. Vulcões, alguns com poucos séculos e uma terra que brotou há milhões de anos do fundo do oceano com os seus mares de lava agora estagnada, feita pedra, mas que ainda revolve como as ondas sob o efeito da luz e das sombras.



Sabia duas coisas sobre Lanzarote: isso dos vulcões e Saramago. Descobri uma terceira: César Manrique. Sim, a ilha é feita das cinzas do fogo profundo do planeta, e sim, foi a casa do escritor português nos seus últimos anos de vida. Mas é também a ilha desse artista visionário. É graças a ele que em Lanzarote existe apenas um edifício com mais de 4 andares, todo o restante urbanismo vive em perfeitamente harmonia com a paisagem. Como arquitecto todas as intervenções que fez respeitam o ambiente onde se inserem e criam uma experiência que, para mim, foi uma das mais belas descobertas que fiz.Um pequeno exemplo: na Fundação com o seu nome, uma casa montada sobre e sob uma corrente de lava negra, há uma janela em vidro cuja vista vai precisamente até ao alto do vulcão de onde essa corrente desce. Seguindo o olhar lá do cimo, acompanhando essa cicatriz negra de lava até mesmo junto da janela e dá-se o milagre, o génio: parte dessa onda entra pelo vidro e avança já dentro da sala uns metros. A fotografia não faz o jus devido à obra, mas garanto que é de uma sensibilidade extrema esse momento mágico.


E o Mirador del Rio, e as Cueva de los Verdes, os Jameos de Agua e as suas piscinas azuis e brancas, o Jardim dos Cactus, o monumento ao Camponês e uma série de detalhes que em mim ficam para sempre.


 
 
 
 










Teguise e o seu mercado, a Graciosa, pequena ilha ao largo de Lanzarote que visitei e onde dei o primeiro mergulho nesses mares, numa praia cujo o cenário mais um vulcão erguia ao longe, e suas ruas de terra e suas portas coloridas, a praia do Papagaio onde comi lapas numa escarpa ladeada de duas praias, e a Lira comigo e eu no seu alcance e uma Lua ainda de tarde com o céu mais que azul. As vinhas rentes ao chão, escondendo-se do vento.









  
























  



E Saramago claro, o seu reduto, os detalhes de uma casa que foi um ninho, a carpete de pedra na entrada, a oliveira que trouxe de Portugal e uma cadeira no jardim com vista para o mar e o silêncio.










E, pois claro, o mais impressionante, a Montanha de Fogo no Parque de Timanfaya, um jardim de vulcões, de deserto, de terras negras, vermelhas e douradas, de um lugar onde a terra sangrou fogo e tudo incendiou à volta. Um lugar que como disse Saramago, nunca ninguém visitará como deseja, isto é, , mas cuja a tatuagem me ficará na alma até ao fim, porque é disso de que se trata, como o tal de Hilário que habitou essas montanhas de lume durante 50 anos apenas com um camelo como companhia, é disso mesmo de que se trata, de rendição perante a vertigem de uma paisagem e tudo o que ela nos traz ao de cima.

Como um vulcão.