Isto de ter um gato. Dou por mim a caçar vultos no canto do olho. A ver se me explico. Mesmo fora de casa, digamos, por exemplo, num corredor de supermercado a escolher bolachas ou cereais, desenham-se furtivos movimentos no canto do olho, movimentos esses que o meu cérebro traduz como sendo o raio do gato a esgueirar-se. Algo impossível naquele momento já que se encontra em casa e eu no supermercado. Mas é isto mesmo de se ter um gato, fica-nos na retina e povoa-nos os instintos. Ter um gato passa a ser um reflexo adquirido. Pavlov terá explicado isto melhor. Fico-me pelos vultos no canto do olho, que me fazem parecer, seguramente, paranóico. Não são lamechices, essa parte é a do mimo e essas coisas todas, falo de algo científico, do domínio da psicanálise, deixem-me em paz. Obrigado.
Sociedade secreta
Quando escreveste sobre um homem de casaco comprido e de chapéu que te seguia ao longe, adivinhaste-lhe nos bolsos fundos um emaranhado de papéis com versos soltos, sem rima, sem aparente sentido. Sabias que era um daqueles homens que pertencia à oculta organização que se dedicava a escrever sem parar. Queriam recurtar-te pensaste, mas descobriste que afinal apenas procuravam o que já tinhas escrito. Queriam, portanto, as tuas palavras. A razão só a soubeste mais tarde, quando te apanharam e prenderam. Antes de te abandonarem no deserto, com os dedos partidos e a língua arrancada, revelaram o seu segredo: queriam as tuas palavras para as silenciarem. Ficarias assim, sem literatura, sozinho, abandonado numa imensidão de rocha e areia, a sangrar da boca, mudo perante o infinito.
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