Lendo

Gente de Smiley, de John Le Carré.


Hei-de recordar sempre as palavras de um comediante de Berlim quando, contra todas as previsões, o Muro de Berlim foi finalmente demolido. "Perdeu o lado certo, mas venceu o lado errado."


Ostrakova sentou-se à secretária do seu defunto marido e escreveu ao general com a franqueza que as pessoas solitárias reservam para os estranhos...


Além disso, há uma certa camaradagem entre dois homens que contemplam um cadáver.


Há pessoas que conhecemos e nos trazem todo o seu passado como uma dádiva natural. Há pessoas que são a intimidade em figura de gente.


Passou um rapaz de bicicleta com um gorro de lã vermelho e o gorro deslizou rua fora como um archote até ao nevoeiro o apagar.


E que, uma noite, ao ouvir a mãe rezar durante o sono, ele mandara os seus homens buscá-la e eles a tinham levado para dentro da neve e nunca mais ninguém a vira: nem sequer Deus, que ainda andava à procura dela.

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Durma-se

O atraso, ai o atraso. Já escrevi sobre o conceito, sobre o enguiço do adiar e de como nos aliena subtilmente. Tenho lido sim. Aliás, na mesinha de cabeceira jaz o "A Gente de Smiley" lido de fio a pavio e com algumas notas para partilhar por aqui. Tal como "O Medo" de Al Berto, que vou lendo aos soluços. E agora, como anunciei noutros lugares, debato-me com o Moby Dick em inglês. Pura demência claro. Há noites atrás, quando Ismhael, ainda em terra, conhecia um estranho canibal com quem teve de partilhar cama, e eu, qual marinheiro perdido, lutava contra a torrente de vocabulário que me escapava, a luz do pequeno candeeiro fundiu. Assim, de repente. Em pleno Moby Dick, seriam umas duas da manhã, eu já encharcado de palavras desconhecidas para o meu inglês (pobre mas esperto), a luz foi-se e fiquei na escuridão com uma obra prodigiosa nas mãos. Pensei: "a morte deve chegar assim, nós sem entender muito do que se passa, mas apercebendo-nos de que deve ser algo de grandioso, e depois, de repente, o breu. Durma-se pois", pensei assim mesmo. Dá-me para isso.

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Artur Agostinho

Faleceu Artur Agostinho. Ícone do relato desportivo, dono de um porte doce e afável, presente na televisão e rádio desde que eu me lembro de ver e ouvir. Mas aquilo que mais me emocionava e que hoje me entristece um pouco mais num cantinho de mim, era a sua semelhança física com o meu avô que também já partiu. Ver Artur Agostinho era sempre experimentar uma lembraça carinhosa e terna, muito minha. Que descanse em paz.

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Eterno sabor a nada

Sabia a pouco o vento naquela noite. A solidão sabe sempre a pouco. Melancolicamente a pouco. Porque quando não se está só, quando a alma comunga, nem que seja em silêncio, o paladar encontra-se cheio, distraído com tanto sabor diferente. Mas no silêncio, no aperto de se ser deserto, o gosto das coisas é nada. O infinito será isso, um eterno sabor a nada.
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31, the aftermath

Dos 31.

Feitos. Mais um. A dois da capicua que sentenciou Jesus. Uma torradeira, o livro "Deus não gosta de nós" do fictício autor Hank Moody, algum dinheiro e o "on ten legs" dos Pearl Jam, a caixa, com fotos, posters, cd e dois vinis. Telefonemas, mensagens, beijos e abraços.
Eis o balanço de ontem.
Tudo maravilhosamente igual. Ainda bem.

Obrigado.

Para memória futura 11

Começou cedo, mas gosto de acreditar que este tipo de coisas (as paixões) já começam antes de tudo, no eterno. Teria 3 ou 4 anos e, aos domingos, lembro-me do meu avô Fernando de rádio no ouvido a beber o relato. Era o Porto. Lembro-me do meu outro avô, Francisco, contar que fora árbitro e cronometrista de várias competições (atletismo, ciclismo, natação) e que muitas foram no velhinho estádio e antigas piscinas das Antas. Lembro-me do meu pai falar que foi juvenil no FC Porto e do primeiro treino que fez nesse mesmo estádio. E lembro-me de ir às Antas, no meio de uma multidão imensa, rodeado do meu tio-avô Américo e do meu pai para ver o Porto -Dínamo de Kiev em 1987, meias-finais das Taças dos Campeões Europeus que o Porto venceria na Áustria com um calcanhar. Nesse jogo frente aos ucranianos, o Futre marcou um golo com a ajuda do defesa e recordo ainda hoje do festejo louco que o esquerdino fez. Trepando o arame farpado para ir ter com os adeptos. O André marcou o outro.
Aquando da final, estava em Bruxelas com os meus 7 anos e com a minha querida avó Beatriz, os meus pais, esses, estavam em Viena a ver o jogo ao vivo. O Porto sofreu um golo cedo e a minha avó vendo-me triste disse "não te preocupes que a Nossa Senhora vai ajudar o Porto", fiquei ainda mais nervoso e, se não me engano, fui a chorar para o quarto. Mas certo, certo, é que a "Nossa Senhora" lá foi parar ao calcanhar de um muçulmano chamado Madjer e deu o empate, e pouco depois foi parar ao voo de um brasileiro pequenino chamado Juary e deu a vitória. A minha avó teve razão, e lembro-me de na sala festejar e ver o Carlos, um amigo dos meus pais que morava connosco na altura, de joelhos em frente à televisão a festejar também.
Meses depois, é a memória do meu pai a festejar em Bruxelas, de madrugada, a vitória da Intercontinetal. Anos depois no Algarve com um bom amigo, recordo o festejo em cima de um comboio que ia para a praia festejando a vitória frente à Lazio para a UEFA e meses depois em plena Avenida Brasil, de onde escrevo, recordo-me de estar a fazer a barba no quarto-de-banho e ouvir vindo da sala, amigos a festejar o terceiro golo do Porto frente ao Celtic (quando foi o prolongamento não consegui ver mais o jogo com os nervos e decidi ir fazer a barba) e de ir a correr com meia barba por fazer festejar com eles. E toda a noite até ao Dragão onde chegaram os vencedores. Um ano depois, de novo com amigos, recordo os três golos frente ao Mónaco e de mais uma noitada na Alameda das Antas esperando de novo pelos campeões.
Lembro-me também de derrotas: frente à Sampdoria na Taça das Taças, frente ao Barcelona nas meias-finais da Liga dos Campeões, frente ao Famalicão nas Antas no último minuto, frente ao Boavista do Jaime Pacheco também nas Antas, frente ao Benfica há semanas atrás, frente ao Shalke nos penáltis. Lembro-me de empates, de jogadores, de treinadores, de jogadas e de golos.
No fundo, esta memória para o futuro, é apenas a demostração atabalhoada do que é ser-se de um clube. fSou-o pela família, por amigos e pela cidade. Outros terão histórias parecidas, outros diferentes. Há coisas que não se explicam.
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Sobre mim

Escrevi textos, em tempos idos, que eram sobre mim. Eram textos que escrevia obrigado. Textos inevitáveis. É curioso reparar que as palavras mais pessoais jorravam devido a forças mais fortes que eu, espontâneas, independentes. Hoje, quando escrevo, faço-o sob o peso da inspiração sim, mas com mais consciência, percepção. Escrevo, claro, sobre tudo, menos sobre mim. Até porque não há nada a dizer sobre mim, ou o que houver, vou-o dizendo escrevendo sobre tudo o resto.
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