Do tempo

Não tiveste nunca a noção do tempo. A percepção de que ele passava era ténue. Continua igual. O sol cai no mar todos os dias, e as gaivotas fazem o mesmo voo ao fim da tarde. Recordas talvez as noites de chuva intensa, com relâmpagos ao longe a despenharem-se no horizonte como cicatrizes celestes. Das manhãs, guardas a sensação do banho das primeiras luzes, dos candeeiros a apagarem-se, dando lugar ao sol. Das tardes tens o peso do seu arrastar por livros e músicas no rádio.
O tempo esvai-se. É um suspiro e já passou. Há muito.
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Kalashnikovs

Entrar, não entraram. Mas sei que rondaram. O meu vizinho, um tipo gordo e mal cheiroso que não dorme de noite (nem de dia), disse-me, quando me encontrou nas escadas, que de madrugada viu quatro brutamontes de espingardas na mão, a espiar a rua, espreitando pelas janelas e arrombando caixotes de lixo.
- Espingardas? - perguntei.
- Sim, ou metralhadoras ou lá o que era. Coisas grandes, assim. - e simulou o tamanho com os dois braços.
- Seriam Kalashnikovs? - atirei.
- Isso, sim, daquelas dos filmes nos desertos e o caraças.
Agradeci-lhe a informação e regressei a casa. Ele ainda dormia. Pelos vistos, o susto de ter gajos de kalashnikovs atrás passara, ou, pelo menos, não lhe tirava o sono.
- Pá, acorda. Os gajos andam aí.
Estremunhou.
- A sério? E falaste com eles?
- Claro. Paguei-lhes um café e tudo.
- Não brinques.
- Não brinco não. Andam gajos de metralha na mão, à tua procura, provavelmente para te fazerem uns furos e mais a quem estiver por perto, mas eu não brinco.
Voltei a trancar as portas e as janelas. O dia ia ser longo.
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Kalashnikovs

- Deixa-me entrar, andam uns gajos atrás de mim!
Estas foram as primeiras palavras que ele disse quando lhe abri a porta. Entrou nervoso e foi sentar-se no sofá.
- Uns gajos? - perguntei.
- Sim pá. Vieram-me dizer lá a casa que uns tipos andam à minha procura de kalashnikovs na mão!
- Kalashnikovs?
- Sim, uns gajos manhosos, com mau aspecto.
- Foda-se, e vens para aqui porquê?
- Pá, porque não tinha para onde ir. E tu tens cara de maluco, se calhar podes dar-me uma ajuda, não?
- Cara de maluco? Qual ajuda qual caralho pá. Gajos de kalashnikovs? Mas tu estás-te a passar ou quê?
Ele calou-se. Percebi que aquilo de eu ter cara de maluco era mesmo a sério.
- Ouve lá, mas quem são os gajos?
- Não sei pá. Eu não tenho entrado em esquemas nem nada. Não percebo.
- Foda-se, de kalashnikovs?
- Sim. De kalashnivokvs.
- E agora? Que queres que eu faça com a minha cara de maluco? Achas que paro balas de metralhadora com o focinho, é? É sempre a mesma merda pá. Cada vez que vens bater à porta vens com cenas à filme pá! Já quando foi a história dos dois irmãos atrofiados que te queriam rebentar as pernas, vieste bater à porta. Passei duas horas a convencê-los que tu és um gajo doente pá!
- Faz-me este favor pá, fala com os gajos.
- Mas que gajos meu? Achas que eu vou falar com gajos de Kalashnikov na mão?... Kalashnikov?
- Sim, kalashnikov.
Era tarde. Tranquei as portas e as janelas. Amanhã logo se via.
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Bissexto

Um novo ano. A imensidão de 366 dias desta vez, para ficarmos com as contas certas daquelas seis horas a mais que a terra demora a rodear o sol. Uma imensidão que se dilui depressa, como as horas de sono durante as noites. O tempo é o mar que nos banha em silêncio. No fim seremos não pó, mas espuma. Que nos calhe uma praia bonita no olvido.
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