Escrever

Escreves. A partir de hoje escreves todos os dias. Nascerá na alma essa vontade, mas para além disso, pedirá também uma vontade do corpo. É certo que tudo começa antes, talvez num sonho divino ou na escuridão do cosmos, porventura inicia-se em algo predeterminado ou fruto do acaso, mas depois do antes desagua-se inevitavelmente no corpo, por isso, para escrever é necessário que algo de físico aconteça, que no cérebro ocorram coisas que a neurologia explique e a bioquímica exemplifique, que daí resulte algo mais tátil, que os músculos, cartilagens, tendões e ossos façam o seu trabalho. Para escrever será então necessário que se puxe uma cadeira, que haja papel, seja ele de pasta de madeira ou digital, que haja tinta ou teclas e dedos a desenhar ou dedilhar. Que se coloquem letras umas à frente das outras, e uma letra é sabido vem de longe, vem dos inícios de sermos gente antes ainda de se escrever, de quando deixámos de ser macacos e passámos a ser estes macacos específicos, que uma letra representa uma convenção e que uma convenção representa outra coisa qualquer que se calhar os idos formalistas russos explicavam. Mas que se fodam os formalistas russos, apesar de lhes reconhecer o mérito de terem sido formalistas russos, mas bom. Escreves e isso nota-se, e depois dessa vontade ter nascido na alma, nos infinitos do espaço ou no tédio de um deus qualquer, passou pelo corpo que teve finalmente de traduzir alguma coisa em palavras. Escrever dá um trabalho de milénios, escrever é ser-se todo o silêncio de uma vez e todo o ruído que nunca se ouviu.
Escreves e a partir de hoje fá-lo-ás todos os dias.

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