com sangue


diante, uma vez mais, de um imenso mar deserto
o assombro do silêncio inteiro por dizer

as palavras não têm átomos
sua essência é de uma outra dimensão e somente a alma as pode decifrar

o enigma é esse
como demonstrar que o espírito se torna coisa vindo do nada?
como provar que a poesia é alimento invisível do espírito?

como escrever senão com sangue?

dia mundial da poesia

por ser o dia mundial da poesia
forcei a escrita

mas esqueci que o milagre é sentir a queda vertiginosa do que é a própria poesia

poesia
que era poema
poema que era verso
verso que era palavra
palavra que era letra
letra que era silêncio

silêncio
silêncio
silêncio

nuvens

nuvens
leves e suaves escamas de céu
frutos de um outro mar
seres de um oceano etéreo

ora esfumam-se ao longe em suspiro de sol
ora esvaem-se em chuva de prantos invernais

quando à terra descem feitas neblina e brumas sebastiânicas
é um outro rei que se vislumbra
Artur e sua derradeira espada

Excalibur
é na verdade uma pena com toda a poesia possível
Camelot e os cavaleiros
um caderno vazio e uma irmandade de poetas

as nuvens não são nuvens
são a promessa da infinita beleza da liberdade e de todos os versos por dizer
são o lugar preciso entre o silêncio e o uivo ancestral da poesia

sem título

dás por ti coberto de uma pele que nem sabias ser a tua
pelos poros uma lembrança insiste em invadir-te
e pelos lábios uma água nova inundou-te com fogo
afogas-te nessa noite recente onde um relâmpago clareou um chão de sala, um sofá e dois copos vazios
porque há sedes que não se saciam

na tua boca e nas tuas mãos ainda sentes a sombra incandescente de uma flor cor de verão que brotou de surpresa gravando no olhar a sua silhueta leve e desconcertante

já te perdeste
não há mapas nem bússolas nestas coisas

38

38
assim feitos

poderiam ser outros trinta e qualquer coisa ou sessenta ou vinte
que importa?

no dia a seguir à morte de Stephen Hawkin que detalhe inútil é este de uma idade?

sem sequer ousar entrar na inteligência do que ele alcançou e revelou, ouso, pelo menos, na intuição de ser humano, entender que o tempo é somente poesia

o correr de um verso para outro
e que nesse correr, espaço digamos, se curva, se move e se expande segundo leis que já cá estavam

não sei
talvez possa dizer
do alto dos 38
que o tempo não me apanha nem me restringe
que antes comunga comigo o destino da eternidade
ambos livres e prisioneiros de paixões e vontades
filhos do que é belo e infinito

de lanço

de lanço
como que num impulso fazer a lua ser sol em plena noite e iluminar tudo de uma vez com um verso
colher o relâmpago que ziguezagueia nos teus olhos e beber-te pelos lábios sem que tenhas tempo de dizer palavra

teres-me ainda antes de eu poder inspirar
roubares-me o ar no antes de qualquer coisa
no antes do tudo

que a nossa rendição seja a mais violenta das paixões
que nos esgotemos em nós
mais do que juntos
fundidos
derrotados perante a vitória da nossa insanidade

sermos mil ventos a ressoarem pelos nossos corpos num vendaval de suor
sermos carnificina de afagos
para que das nossas carcaças possa o silêncio mais denso brotar quando nos abandonarmos ao sono

desfaçamo-nos para renascermos puros e lavados como uma manhã depois de uma tempestade

o que é eternamente fugaz



começa quase sempre com um vulto
um recorte de penumbra e de sombra sobre uma parede
um corpo desenhado pela luz e contraluz

e tudo isto entra-me pelo olhar

é uma lembrança nítida na sua indeifinição

não sei explicar de outra forma que não seja por uma memória de um cheiro e de uma réstia de um calor morno e preguiçoso sob a pele

isso
um espreguiçar do teu corpo numa manhã esplendorosa de sol a inundar-nos da janela
o teu pescoço e o lento bocejo discreto da tua alma derramada sobre a minha
uma paz absoluta de que a perfeição é real e que se esfuma na mais terna das melancolias

o amor é isso e pouco mais
e o pouco mais é acessório
o que conta é o que é eternamente fugaz

o silêncio de uma cama desfeita de nós, por nós
o mar do outro lado da rua e o horizonte preso no fio leve de uma navalha feita de céu e de brumas
os teus lábios a descolarem-se tão lentamente que o próprio tempo estagna-se a si mesmo e é como se tudo durasse para sempre

e no início era um vulto
um nevoeiro impreciso e ainda assim tão certeiro, tão verdadeiro como que velho de mil milénios e mil mundos

o espectro do teu ser na revelação do teu corpo nu e perfeito nas palmas da minhas mãos e no meu mais profundo e intenso assombro

dou por mim longe de mim, fora de mim e para lá de mim
o milagre que és é a evidência de que somos feitos de brisa, de sede e de versos
por isso voamos em segredo, bebemos em loucura
e por isso nos despenhamos incandescentes em cada segundo de uma paixão

"desansiar-te"


aos poucos vou-nos coando nesta minha peneira de versos
um bolero de um só sentido
do clarão do que fomos à ténue penumbra de um futuro sem ti
esbatido no mais pardo dos timbres
como um nevoeiro esfumado onde a luz se esbate até ao infinito

esta ideia de desansiar-te
na certeza de que as palavras o vento as leva
mas certo também de que se as leva não as apaga
não as despalavra

todos temos os nossos pequenos lutos
e deslutar-te de mim é um caminho que se faz numa estrada silenciosa
inimaginar-te para poder despadecer de ti

talvez procure, à força de poesia atabalhoada, desescrever-nos e  destatuar-te
como se para evitar um olhar bastasse cerrar os olhos
mas não
um olhar que nos entra na alma é um feixe de luz que não se paga nunca
é um farol definitivo no mar do espírito
por isso é que é pelo olhar que reconhecemos alguém

desreconhecer-te, fazer de ti um novo rosto e um novo corpo para amar
pois ninguém desama de vez

mas isto não é sobre ti
isto é sobre mim e sobre a forma de me desinventar pela escrita
de saber que o que resta é mais que uma carcaça e do que um longo deserto sem sombras
saber que o que resta é muito mais do que apenas passado

todos estes desqualquercoisa são um lento correr de poesia
verso a verso como um bálsamo para desansiar-te
e insistir
bem lá no fundo
em desviver-te

um nada



talvez chova profunda e silenciosamente num lugar longínquo
e poderá ser que o gotejar da água acorde velhos versos adormecidos

as palavras elevam-se ao ritmo de uma planta
possuem a sua própria escala temporal e enraízam-se nos seus próprios ciclos
dão frutos de sabores etéreos cujas sementes caem do céu como cometas em fogo
e noites há em que o firmamento negro rompe-se em rimas livres ecoando no alto da copa das árvores

quando se cala a chuva inicial de inspiração
reina o silêncio
como quando dois corpos se descolam após o amor
faz-se eternidade breve
inalcançável
por instantes sentimos uma vaga muda a balançar ao sabor de um rumor em queda
desvanecendo até ao mais definitivo vazio
um nada

ser-se



deve ser lenta a poesia
como um cair de folha outonal
em voo de elipse por entre neblinas e sombras

deve encontrar a voz exacta, o tom certo e o timbre definitivo do silêncio do que é dito

pode cobrir-se de penumbra em lençóis aveludados e espraiar-se ao sol até ser cinza e poeira uma vez mais

e a poesia deve também ser o reverso de tudo isso

deve ser veloz e invisível
explodir numa tempestade e erguer mil sóis nas noites densas de breu e de frios antigos
pode ser combustão instantânea de incêndios e paixões enlouquecidas
pode ser grito estridente ou o uivo derradeiro de lobos sob a maior lua de sempre

a poesia deve ser

deve ser-se