sorrisos adiados e outras considerações

os sorrisos adiados
desperdícios de rugas que teriam razão de ser
assim são somente ondas sem praia onde resvalar

talvez possamos deixar as nossas sombras para trás e caminhar em luz
translúcidos
puramente brilho
sem rastro nem pegada
como penas ou borboletas leves de tudo
desenhos de voos e sono
pedaços de preguiça morna numa tarde de sol
o corpo coberto de sal e suor e lágrimas não choradas

a areia como rosto infinito e espuma de vaga como língua a lamber toda a orla
sem nunca saciar a sede nem a alma
o espelho do céu quebrado sobre o mar num estremecimento sem fim de mil sóis sobre outros mil

leves pregas de penumbra e sombra

Era um velho e era em noites como esta, onde os ventos quentes subiam até à solidão, que mais falta lhe faziam certas coisas que já tivera: uma janela sobre o mar e sonhos de sobra a rondar o espírito.

Tentava lembrar-se do momento exacto do seu esquecimento mas a pele ardia por fora e por dentro e desse incêndio restava apenas cinza.

Tempos houve em que a sala espraiava-se por entre rascunhos de versos, melodias de piano e copos vazios. No quarto talvez dormisse uma mulher ou ninguém, o que na maior parte das vezes ia dar ao mesmo. Nada somos se não houver testemunhas da nossa existência (há sempre uma testemunha).

O ar treme no bafo escuro da madrugada, baloiça ao sabor dos carros que rasgam a quietude no seu passar efémero. Estremecem os tragos amargos de uma bebida demasiado forte e o velho hesita em desejar o impossível.

Para além dos carros, alguns cães ladram à vez, assustados com certeza pelo adormecimento súbito de todas as coisas. O velho senta-se numa cadeira e recorda antigas cicatrizes da alma. Os lutos, os remorsos e as promessas que não cumpriu.

De todos os arrependimentos, um volta constantemente às lágrimas dos olhos: o velho jamais tinha sido novo. Não é fácil de explicar, mas, desde sempre, lhe pesou o tempo nos gestos, e cada um dos que desenhou, deixava um rasto arcaico, como se alguém já o realizara antes. Sendo que esse alguém podia muito bem ser ele próprio. No fundo, vivia a vida como se já a vivera anteriormente.

Era um eco, uma repetição cada vez mais subtil, cada vez mais ténue, mais curta.

Um dia deixou de se ouvir.

O calor subia ainda, vinha dos desertos mais longínquos onde se formara por teimosia. O velho que já não se fazia ouvir enrugava-se até ser apenas quebras no lençol da noite, leves pregas de penumbra e sombra.

Disse-me ele falando dela

Ele escrevia para de alguma forma poder, numa poalha de luz, senti-la mais perto. Talvez, na realidade palpável das coisas, ela se lhe escapasse cada vez mais, e o vazio entre as mãos, o colo e os lábios crescesse com a expansão do universo, e num futuro milenar a distância entre eles seria tanta que o próprio esquecimento deixaria de existir, tal como o cosmos adormecido, inerte, pasmado, pantanoso.
Sem ela não amanheceria nunca, mas com ela a noite jamais teria o seu lugar.
As palavras não significam nada. A verdade dos sentimentos dura um instante, e é sabido que um instante não se agarra, é nevoeiro e penumbra e areia fina molhada de sal.
Ele não terá escrito tudo o que podia nem tudo o que devia, mas escreveu o que lhe calhou, e no fim de todas as contas, o silêncio venceu o sopro dos atabalhoados versos.
Resta a certeza de que no correr do tempo jaz a oportunidade de voltar às palavras, e mesmo sendo elas vazias e insignificantes, carregam a promessa de todo o possível, uma ilusão utópica de que há lugar para voltar a um preâmbulo de novas mãos, colos e lábios.

Isto tudo disse-me ele falando dela. E ela, ao meu lado, ouvindo-o, não concordou, apenas aceitou. Diante deles, a mim restou-me ficar em silêncio, testemunhar a serenidade dos copos vazios sobre a mesa. Não soube o que dizer, a subtil e delicada forma com que os dois me olhavam deixou-me ainda mais mudo. Claramente, ali, entre eles, eu estava a mais, sem culpa, sem papel a desenrolar, o voyeur de ocasião, espectador inopinado de um desabafo verdadeiro ou falso ou somente apócrifo.
Deixei-os. Desconheço o que disseram depois. Quando voltei já não estavam e dos copos sobre a mesa nem o vinco sobre a toalha restava. Do que eu ouvira dele sobrava um rumor esmorecido, e dela uma réstia de silhueta imprecisa que tanto era sombra como perfume.
Adormeci mais tarde e dos sonhos que tive, um terá sido com o que ela não disse, e no discurso que proferiu eram mencionadas outras razões para o mesmo desfecho. Havia isso em comum, o desfecho: 

eu a regressar e eles já lá não estarem; sobrar uma brisa do que ela dissera e dele um perfil de penumbra; sobre a mesa o deserto imaculado que dois copos vazios não chegaram a povoar.

Não sei dizer estas coisas de outra forma.