versófagos 

não se sabe bem quando tudo começou
mas aos poucos
sem ninguém se aperceber de verdade
essa gente foi tomando conta das madrugadas e das palavras

o resto de nós
acordou uma manhã e a poesia tinha sido sequestrada

não é fácil de explicar
mas de cada vez que alguém escrevia
eles e elas apareciam sem aviso
tomavam os versos e deixavam ameaças

quem insistisse
era levado também durante a noite
obrigado a escrever até ser dia e depois despejado num beco deixando para trás versos e palavras

estranhamente
não se sabia bem o que faziam com os escritos
mas cada vez mais
as caves dos prédios devolutos eram ocupadas por esses versófagos e suas vítimas durante a noite

vestiam fatos pretos camisas brancas enrugadas e gravatas negras com nós desalinhados
andavam em grupos de dois ou de três
só um falava

farejavam cada linha escrita e impunham uma vontade irrefreável

ei-los a entrarem-me em casa

pergunto-me em que beco acordarei amanhã

vim

voltaste?

não, vim

voltar é um outro caminho com outra laia de bagagem
é carregar a imensidão de eus que se avoluma a cada instante
amalgá-los no caldo quântico e imprevisível da alma do espaço e do tempo
e ao voltar descarregar todo esse peso de infinito
desmoronando-se sobre o próprio regresso
como uma avalanche do espírito e as torrentes bíblicas do passado

o que eu fiz foi vir

e vir é brotar do nada
emergir como as aparições fantasmagóricas
figurar como aquelas coisas que são antes de alguma coisa ter sido
um nevoeiro que quase não chega a ser

vim e é só