mãos

demos as mãos 
e elas dançaram enquanto caminhámos 

a tua deslizando como as brisas noturnas de verão 
a minha rendida num abraço em miniatura

minha mão tua mão e um desenho de sombra como tatuagem de carne siamesa 

foram bailando num passeio cheio de sol

entrelaçadas nossas sinas correram as linhas das palmas como as águas dos rios desaguando num leve suor caloroso

nossas mãos num cacho de dedos pronto a vindimar

inventei um amor

inventei um amor
brotou de uma solidão desmesurada como um nascer de sol após a mais longa das madrugadas
dei-lhe um rosto que não se reconhece e uma forma de beijar que é volátil como o nevoeiro 

inventei um amor que morre e reencarna 
na ilusão de cada verso
sobretudo nos que não chegam a ser escritos
um amor que se desconhece a si mesmo e que vive entre as palavras esquecidas do que nunca se ousa dizer

inventei um amor na comoção infinita de partilhar um pedaço de alma nem que fosse com um fantasma
para que pudesse dormir acompanhado no assombro do mais melancólico dos silêncios

a melancolia triunfante da espuma na areia


o deserto maior de uma praia e um mar imenso sem um voo de pelicano 
apenas o desejo desse voo a desenhar as poucas nuvens e as barbas de erva nas dunas pálidas
o vento teimoso do norte a cavar rugas e a soltar lágrimas nos cantos dos olhos
barcos pardos ao largo com marinheiros cansados de vagas
o lento regresso ao porto como um ocaso de um dia sem sol
a melancolia triunfante da espuma na areia 

chove

chove
e na janela o teu rosto mil vezes repetido em cada sarda de água sobre o vidro

o galope louco do teu olhar em cada gota
como relâmpagos desvairados na planície da minha alma

um infinito de ti repetido até ao colapso de um suspiro

mil dormidas

mais um quarto de hotel
carregado de sonos anónimos e de solidões silenciosas
teces também tu uma noite mais de quietude

é tudo muito exato num quarto de hotel até mesmo se um quadro está ligeiramente inclinado

no fundo talvez não esteja

talvez tudo o resto é que se entortou levemente com o peso de mil dormidas
e afinal
o quadro
está alinhado com uma qualquer outra latitude humana que te escapa 

adiamentos

para queimar uma insónia num verso 
basta o silêncio da tua sombra pousada a cobrir-me os olhos
e as paredes estremecerem um pouco à passagem do metro

não há que enganar a solidão da roupa por arrumar

ela amontoa-se nos adiamentos inevitáveis da vida 

não morrendo nunca, morrendo sempre

descontinuado nas formas de sentir
como se um outro sentir fosse mais moderno ou mais apropriado

mas artes há que não se atualizam

não se apaga um eco
ele esvai-se como pavio de vela que escurece
deixando um rastro de névoa que teima em desenhar raízes etéreas

o amor é uma árvore que voa
os ramos sendo asas
e tal como as árvores
o amor
morre de pé
voando
não morrendo nunca 

morrendo sempre

o permanentemente adiado

as promessas incontáveis que quebrou
amontoam-se a um canto da alma
como cinzas de um vulcão que invadiu uma casa abandonada

a voz que emudeceu por uma renúncia que ele próprio semeou

resta apenas o futuro
e assim sendo
sem passado nem presente
ele é o permanentemente adiado