a cinza do nosso luto

todo um emaranhado de luz e sombras balançando sobre as paredes
o teu corpo, já ausente, não deixa de se esvair sobre a cama vazia
como se a tua fuga não terminasse nunca

o desenho da tua presença esfumando-se pelo quarto

e eu a olhar tudo isso que já não existe

sempre essa luz em manhã perfeita, sempre uma doce brisa melancólica a esgueirar-se pelas cortinas da janela, felina e parda

o eco do amor da noite ainda a ressoar no tecto e nos cantos esquecidos
como se os nossos beijos fossem tatuagens de vertigem e arrepio

confesso que de cada vez que sais, ainda antes do sol nascer, e me abandonas em sono esgostado
espio a tua partida, comungo de teus gestos pausados enquanto te vestes, te calças e sais
e quando a porta se fecha em suspiro fico deitado à espera desta luz que agora invade o quarto

quando me levanto, imito a tua rotina e acabo por sair também

fica a cama desfeita de nós, um rumor do nosso suor a murmurar e todo um silêncio luminoso a espraiar-se pela manhã

pergunto-me se quando ambos desaparecemos esses quartos existem todavia
se sem testemunhas os lençóis ainda se contorcem e se o mar entra pelas janelas abertas e inunda tudo isso, afogando de vez a madrugada em esplendor de passado, de lembrança

talvez escreva por isso, para deixar um vestígio mais dos incêndios das nossas noites
que não sejam apenas os nossos corpos solitários a prova de que é possível o milagre de dois corpos entrarem em combustão
que a poesia também seja a cinza do nosso luto
a poeira de sal e enxofre
e de que também se criam estrelas e galáxias em quartos virados ao mar
e não somente nos infinitos cósmicos

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