um caderno

Perdi um pequeno caderno onde escrevia. Não sei, perdi-o. Não que o tenha procurado muito, mas a verdade é que não está nos três ou quatro sítios onde pensava que pudesse estar. Um acontecimento destes há uma década atrás, ter-me-ia naufragado a alma. Andava eu, nessa altura, agarrado ao que escrevia (que não era assim tanto) como se fosse parte de mim.
Sendo agora, até me parece que essa perda me agrada. Igual aos mitos dos grandes poetas que acendiam cigarros e charutos com os poemas que escreviam, ou as inúmeras lareiras que ardiam em literatura para sempre perdida.
Um verso que arde ou que se perde de vez, é um verso que se cumpre definitivamente. Se escrever é atear uma chama ou perder-se irremediavelmente nela, nada melhor que um incêndio ou um esquecimento para que o destino se realize totalmente.
Do silêncio nasce ao silêncio regressa.
Concebamos todas as leituras que nunca chegaram a ser, todo o silêncio sobre o silêncio, camada e mais camada, pele sobre pele de corpos mudos.

Reencontrei o caderno. As palavras nos sítios onde as deixei, não ocorreu o milagre de alguém as reescrever. No fundo, perdidas já estavam elas e perdidas continuam. Para além de um incêndio, a poesia é uma perdição constante. Ela é um lento voo de pássaro sem rumo.  

dos absolutos



Uma vez mais sorver o privilégio de ir ao Douro. Mil vezes se disse e mil vezes mais se dirá que ali é o lugar da beleza absoluta, expressão cunhada pelo Torga. Escrevi uma vez, no meu atabalhoamento típico, que era a beleza absolutíssima. Agora, refém do limite do que posso escrever mais, ocorre-me apenas o assombro de dizer a beleza absoluta, absoluta, absoluta e poderia ir ao infinito da repetição que cada camada mais seria insuficiente.
Aqui, na eternidade de xisto, cresce vinha e faz-se o mais extraordinário dos vinhos. As cepas são regadas a sangue, suor e lágrimas, gota a gota desde há milénios, e talvez por isso seja tão generoso e fino o mosto. O sol que se derrama vindo a 8 minutos luz de distância, cai sobre a planta e é coada pelas folhas e raízes e, num lento ciclo, em fruta se vai concentrando até ser colhida à mão.
Um rio testemunha tudo isso e há um silêncio que se ouve pelos séculos fora.
Aqui, o milagre é feito de gente, pois pedra se partiu, se rasgou e se acumulou em terraços, vinhas se plantaram em socalcos que se erguem até ao céu.
A beleza absolutamente absoluta.


fenda

Dizia o Cohen que tem de haver uma fenda e que é por lá que entra a luz.

There is a crack, a crack in everything. That's how the light gets in.

Talvez as fendas estejam por todo o lado.

No céu.
E por ela chove uma torrente de palavras ilegíveis que se acumulam em versos dispersos nas ruas vazias.

No olhar.
Não sei que luz arde nos teus olhos nem que incêndio é esse, mas seguramente provém de uma abertura junto à alma e é por lá que ela se escapa com seus lumes e lavas, avançando pelas íris em labaredas cor de mel.

No espaço entre quem se ama, onde o próprio ar se lasca e estilhaça com mil sóis a reluzir e a vibrar em sombras luminosas, caleidoscópios derramados por paredes imaculadas.

Nas palavras, a seiva que percorre lentamente letra a letra, sílaba a sílaba, até brotar na ramagem infinita de significados.

A fenda por onde passa a luz, camada a camada, feixe a feixe, serpenteando no ar, bailando em suspensão de poeiras finas e loucas, qual poção mágica de alquimistas e druidas.
 
A fenda, a ferida, o acaso necessário para que passe luz, para que se faça luz numa quebra qualquer no manto que tudo cobria até alguém ter escrito um verso ou dado um beijo.

a cinza do nosso luto

todo um emaranhado de luz e sombras balançando sobre as paredes
o teu corpo, já ausente, não deixa de se esvair sobre a cama vazia
como se a tua fuga não terminasse nunca

o desenho da tua presença esfumando-se pelo quarto

e eu a olhar tudo isso que já não existe

sempre essa luz em manhã perfeita, sempre uma doce brisa melancólica a esgueirar-se pelas cortinas da janela, felina e parda

o eco do amor da noite ainda a ressoar no tecto e nos cantos esquecidos
como se os nossos beijos fossem tatuagens de vertigem e arrepio

confesso que de cada vez que sais, ainda antes do sol nascer, e me abandonas em sono esgostado
espio a tua partida, comungo de teus gestos pausados enquanto te vestes, te calças e sais
e quando a porta se fecha em suspiro fico deitado à espera desta luz que agora invade o quarto

quando me levanto, imito a tua rotina e acabo por sair também

fica a cama desfeita de nós, um rumor do nosso suor a murmurar e todo um silêncio luminoso a espraiar-se pela manhã

pergunto-me se quando ambos desaparecemos esses quartos existem todavia
se sem testemunhas os lençóis ainda se contorcem e se o mar entra pelas janelas abertas e inunda tudo isso, afogando de vez a madrugada em esplendor de passado, de lembrança

talvez escreva por isso, para deixar um vestígio mais dos incêndios das nossas noites
que não sejam apenas os nossos corpos solitários a prova de que é possível o milagre de dois corpos entrarem em combustão
que a poesia também seja a cinza do nosso luto
a poeira de sal e enxofre
e de que também se criam estrelas e galáxias em quartos virados ao mar
e não somente nos infinitos cósmicos

o tal silêncio que se diz

trava-se um duelo permanente entre tudo o que escrevo e tudo o que não escrevo
é uma batalha entre o silêncio que se diz e todo o ruído que se estagna em mudez
 
o que escrevo é uma ferida no tecido pantanoso do que vivo, dilacera a aura do tempo e perpetua-se como a incandescência de se olhar o sol de frente
 
o que não escrevo é a cegueira que vem depois e o esgar de uma dor, que de tão forte parece que nem chegou a ser
 
é certo, no fim, vence a quietude e o derradeiro esquecimento das coisas
mas creio que uma palavra, mesmo que derrotada nestas guerras, deixa sempre um eco a ressoar pelo universo
a voz não se cala nunca, mesmo moribunda, mesmo cadáver, fica sempre uma pegada no firmamento e nos solos que pisamos
 
não tenho provas do que afirmo
mas quando olhamos o longe
o horizonte balança sempre ligeiramente
e quando olhamos o céu
as estrelas cintilam também
quero acreditar que é a poesia a versar
a ser o tal silêncio que se diz
algo impossível de não existir

pórtico

a ideia de que se pode agarrar uma emoção
de a ter nas mãos como um punhado de areia quente
de a agarrar até ao sangue
tingindo-a de escarlate e penumbra
senti-la não só na alma mas também no corpo como um estremecer do âmago
um sismo orgânico
qual vertigem sensorial
poder falá-la, descosê-la da língua subterrânea do espírito e estendê-la em versos com a força de mil ondas
num maremoto lírico sem igual

tatuar essa emoção em cada canto de ruga
torná-la o mapa visível do meu destino
breve cataclismo do que própria matéria pode suster
um pórtico entre o que à alma pertence e o que à terra diz respeito
uma janela para esse limbo que um olhar por vezes também desvenda

metamorfoses pronominais


Neste preciso momento, se me pedissem uma palavra, uma só palavra
derradeira e definitiva
diria

ela

Tempos houve em que se o mesmo pedido ocorresse
a palavra teria sido

tu

e

tu

rebentava-me nos lábios, na boca e na alma. Agora, esse
enlouquecimento
anoiteceu em deserto e em silêncios subtis de madrugadas

ela

é uma
deslembrança
que me povoa, uma ausência e uma impossibilidade sem tempo.

Nos bastidores indizíveis de uma língua, as palavras não escapam à verdade das suas próprias regras.
ela é ela e tu foi tu.

Só a poesia é capaz da mentira, dos ses e das metamorfoses pronominais.

Na vida tudo pode mudar, até os pronomes.

após


Por vezes, logo após um assombro de inspiração, um vasto mar vazio e silencioso ergue-se no horizonte das esperas.
Correm brisas e, por momentos, as próprias sombras existem sem que haja um corpo para as desenhar. A luz não é coada por obstáculo algum.

quietudes nocturnas

O que tens para mim?

palavras

Aceito. Aceito tudo. Apenas te nego os nadas.

pois, mas são palavras de nada que tenho para dar
ausências, savanas silenciosas sobre mantos de penumbra

Nunca amanheces?

raramente
a minha madrugada é quase sempre permanente
eterniza-se e quando penso que a noite ameaça diluir-se, um vento de breu levanta-se e volta a cobri-la
fico refém das quietudes nocturnas


E quando calha de o sol nascer?

é tarde
o mundo é um deserto e só estou eu esgotado de insónias, vazio


E dormes então?

morro
como um derradeiro desmaio
o meu corpo estende-se por uma praia, torna-se areia dispersa
quando volto a mim é noite uma vez mais e recomeça tudo de novo

Nunca te velaram esse sono?

talvez, uma vez
julgo que sonhava e que havia uma vaga de carinho a banhar-me mas todo eu permanecia à deriva
a minha pena é naufragar sempre, para sempre
sou bússola sem rosa nem brisa nem rumo

Aceito tudo mas nego esses teus nadas.

eu sei
mas nem os nada são meus para os poder dar
e, no fundo, o que é que se pode dar a alguém no fim de todas as contas?

Uma mentira.

ah, sim
mas dar uma mentira é o mais fácil
a mentira não necessita de ninguém a cuidá-la
é erva daninha, praga, ferida cuja cicatriz não sara

É tudo assim tão triste então?

não
é tudo melancólico como um banho morno
é tudo uma balada, uma nostalgia que não se cumpre, uma saudade de tudo o que não chegou a ser e a certeza de que nunca mais será
no entanto, há também o conforto de que se imaginou algo de maravilhoso, de glorioso, único e só nosso
os impossíveis que nos pertencem e que guardamos como tesouros secretos
a eternidade dessa vertigem, mesmo que durando um breve instante, fica para sempre, tatua-se num eco que resvala pelos confins disto tudo