Os três inexistentes livros

Seriam três livros.

O Livro I contaria a história de amor. Um homem e uma mulher conhecem-se e apaixonam-se. Ele conta a história. Fica-se a saber que o amor dele vem de uma vertigem sem limites pela beleza dela. Uma beleza que o despedaça logo de início, que se torna um vício terrível. Do amor dela por ele pouco se vai sabendo. A dado momento, por razões ocultas, ele desaparece, beija-a e parte. Nesse exílio ficamos a saber que ele lhe escreve cartas, centenas, milhares, durante vários anos. Cartas das quais nunca recebe resposta. Um dia, descobrindo que tem uma doença terminal, decide escrever uma última carta. Nessa carta despede-se e revela que passará o resto dos dias a relembrá-la e a relatar-lhe num monólogo interior o dia-a-dia que leva nesse lugar no qual se refugiou. Essa última carta é que abre o Livro I perfazendo o capítulo 1. Nos capítulos seguintes inicia-se o monólogo e aí ficamos a conhecer a história, de como se conheceram, de como o amor por ela tinha vida própria, de como as razões para a sua fuga mesmo que sempre ocultas tinham igualmente vida própria. Ao mesmo tempo ele vai relatando a tal rotina que leva desde que a deixou, uma vida de escrita, de bebida, de encontros num bar com várias personagens que lhe contam as suas vidas.
No fim, uma visita inesperada de um amigo, revela-lhe que pouco depois dele ter partido ela morrera num acidente. Nunca chegara a ler nenhuma das cartas que ele lhe tinha escrito, que pouco tempo tivera para sofrer com o seu desterro. Decide então deixar de lembrá-la, escolhe o silêncio e espera que a doença o leve também.
O Livro I teria o título de "A última carta".

O Livro II o monólogo regressaria, e ele explica que, afinal, tinham encontrado uma cura e que não morreria dela em breve. Com esta notícia decide regressar ao lugar onde a conhecera e onde viveram os dois. Reencontra a casa dela igual, e um vizinho guardara todas as cartas que ele lhe escrevera nos anos anteriores. O livro teria passagens de certas dessas cartas e todo o relato de como ele tentava reencontrar uma rotina no antigo mundo onde a conhecera. Encontra gente nova que lhe conta as suas histórias e no fundo, o monólogo que vai dizendo dirige-se a ela, como se a quisesse ressuscitar. De novo o amor pela beleza dela ganha forma e vida própria.
O Livro II intitular-se-ia "Cartas perdidas".

O Livro III é o relato de um escritor que tinha publicado os dois livros anteriores e que é acordado a meio da noite por um homem baixo e duma certa idade que lhe entra em casa e que lhe conta toda uma aventura: esse homem, ao ler os livros, apaixonara-se pela personagem feminina, sofreu da mesma vertigem que o protagonista masculino, que aquilo se tinha tornado doentio, uma obsessão, que precisava, a todo o custo, de conhecer aquela mulher e que por isso visitava o autor para saber se ela era real. O autor explica que se trata de ficção, mas o homem não aceita. Diz que visitou todas as mulheres que o autor conheceu mas não "a" encontrou. Ao longo dos anos pesquisou e estudou várias ciências afim de arranjar uma forma de a tornar real. Que estudou teatro, encenou os livros a ver se conseguia acalmar o seu amor contracenando com uma actriz que fizesse dela. Tentou através da genética recriar em laboratório uma mulher que fosse ela. Nada tinha resultado. A sua última tentativa tinha sido criar uma fórmula química numa bebida que uma vez ingerida o transformaria em literatura e assim conseguiria entrar nos livros e encontrá-la finalmente. Tudo isto é relatado pelo autor. Na cena final, o homem bebe e desaparece. O autor olha para a estante onde tem os livros que escreveu e do nada, aparece um outro.
O LIvro III seria "O homem que se fez literatura".

um quixote é preciso



um Quixote é preciso

essa doidice desvairada de se ser livre e prisioneiro ao mesmo tempo
de crer acima de tudo que as injustiças existem para serem combatidas
que gigantes são moinhos e que o amor comanda a loucura
que não há tempo a perder em ser-se pequeno
que as batalhas nos esperam e que a coragem vai a cavalo e que o medo é o seu alimento mais poderoso
que a paixão nos torna invencíveis
que a morte pode ser bela se for enfrentada de frente
com o coração como escudo e a poesia como lança

trilogia do início - início


trilogia do início

III

início

depois do antes

é impossível saber o inicio no seu exacto momento
ele é invisível ao presente

o começo ocorre apenas quando o tempo já sobre ele fez o seu trabalho
e é uma saudade futura cuja percepção se me escapa

o início é uma ilusão
até porque muitas vezes ele não acaba de se revelar
como se o seu nascimento fosse permanente e inacabado

por isso não sei propriamente o que se ergue no horizonte
mas navegar é inevitável e à deriva teima em ser o melhor plano

depois do antes
quando tudo se incinerou nos vales mais profundos da alma
quando a cinza assentou dos seus voos flamejantes
caminho diferente e igual

pronto a cometer os mesmos erros e as mesmas glórias
sabendo que nunca se recupera o que passa mas que se abrem as portas escancaradas do que está por passar

antes do antes, o antes e o depois do antes
são o desenho preciso de tudo o que é possível
nada se altera e ainda assim tudo muda

das verdades

Das várias linguagens, a Verdade é uma entidade indizível, inexplicável, irrevelável. Pois se no momento exacto em que se manifesta já ela se metamorfoseou.
No fundo, a Verdade viaja até se mostrar. Seja essa viagem no gesto primitivo de um abraço, mimo ou beijo, seja tatuagem de um verso ou expressão artística, no afago ou vertigem de uma emoção, esse percurso muda a Verdade. Ganham-se outras verdades e perdem-se forçosamente outras do tecido original. E assim é, e assim é bom que seja.
Tudo isto para dizer o seguinte:

ele caminhava junto ao mar, o que por si só é todo um manifesto. Chegou à conclusão de que tudo deixa um rastro, um eco ou um traço de sombra e penumbra. Rastro invisível, eco inaudível ou penumbra ténue. Mas nenhum testemunho se apaga de vez. As coisas acontecem. E mesmo depois de acontecerem, mesmo após o esquecimento e de milhões de anos de erosão, sob a pele da existência uma cicatriz delicada não deixa de se desenhar num sopro, numa subtil textura levemente rugosa.
Os venenos destilam fel eternamente e os variados antídotos que vamos criando e tomando, ajudam, sim, a manter a alma no seu voo mas a gravidade é a lei teimosa que prevalece e, a longo prazo, nada evita a derradeira queda.

Mas a beleza de tudo isto é que a queda não é queda pois não há cimo ou baixo no cosmos, as quedas vêm de todos os lados.
Dizem eles, até, que devagar, ao ritmo de incomensuráveis medidas de tempo, o universo desacelera, que a gravidade definha e se extingue, que depois do futuro restará somente um caldo morno no marasmo disto tudo, um pântano espacial.

Aos olhos dele, que caminhava junto ao mar, esse tal futuro seria a ausência dela. Ele já lá estava.

devaneio

ah esta coisa de vir aqui e não dizer nada e assim dizer tudo e esconder-me ao mesmo tempo que me dispo e de falar de solidão e de estar com o mundo inteiro

de lutar sem outro corpo para destruir que não seja o meu e na dor dessa violência enterrar a dor a sério que nunca é minha e diluir esse amor pelas coisas simples que uma vida pode dar como um beijo partilhado pela boca toda sem pudor nem vergonha e um verso perfeito no poema que quase se escreve

de entregar a alma a uma bebida e com ela desligar de tudo num vôo solene transcendente até ao âmago de uma sombra que não pára de nascer num recanto de estrada

ah esta coisa de saber e não saber e saber tudo
de falhar e acertar e continuar e insistir no mesmo erro esperando que algo de novo brote
no fundo tudo isto é a receita de enlouquecer e entender que não há outro caminho que não este
o da loucura
da entrega total a um momento e ele se perpetuar num devaneio perfeito de mim

a constante obsessão de tatuar na pele do silêncio um qualquer suspiro um qualquer sussurro uma brisa que nasceu antes de nós e nos levou por mil universos até nos despenhar aqui agora já

premonições póstumas e outras alquimias


soube depois mas já o sabia num limbo do antes
como se o tempo fosse atirado ao esquecimento momentâneo do que corre silenciosa e inexoravelmente

escrevi-o num repente que brotou já o sono me vencera
e qual náufrago a este caderno me agarrei e escrevi

premonições póstumas e outras alquimias 

sem outro sentido que não fosse o instinto definitivo de sobrevivência:

que se não me salvasse eu ao menos se salvassem os versos
e que pudesse o rosto dela estilhaçar-se noutros olhos e neles sugar a paz de alma de um coração que nunca amou e para sempre o assombrar de vertigens e rendições inúteis como o garimpeiro que nunca se satisfaz com a pepita de ouro que eventualmente encontra

dos extremos



fossem antes nevoeiros ou tons cinzentos de penumbra difusa e indefinida

fossem dúvidas e incertezas definitivas

mas não

são o breu mais denso imaginável
ou são o total encadeamento de luz

é a mais desoladora desilusão
ou o encantamento final da tua beleza

não há meio termo nem há consensos ou compromissos

no fundo, o que há é tudo e nada

o silêncio ou a poesia toda do mundo

o teu rosto ou o derradeiro esquecimento