Disse-me ele falando dela

Ele escrevia para de alguma forma poder, numa poalha de luz, senti-la mais perto. Talvez, na realidade palpável das coisas, ela se lhe escapasse cada vez mais, e o vazio entre as mãos, o colo e os lábios crescesse com a expansão do universo, e num futuro milenar a distância entre eles seria tanta que o próprio esquecimento deixaria de existir, tal como o cosmos adormecido, inerte, pasmado, pantanoso.
Sem ela não amanheceria nunca, mas com ela a noite jamais teria o seu lugar.
As palavras não significam nada. A verdade dos sentimentos dura um instante, e é sabido que um instante não se agarra, é nevoeiro e penumbra e areia fina molhada de sal.
Ele não terá escrito tudo o que podia nem tudo o que devia, mas escreveu o que lhe calhou, e no fim de todas as contas, o silêncio venceu o sopro dos atabalhoados versos.
Resta a certeza de que no correr do tempo jaz a oportunidade de voltar às palavras, e mesmo sendo elas vazias e insignificantes, carregam a promessa de todo o possível, uma ilusão utópica de que há lugar para voltar a um preâmbulo de novas mãos, colos e lábios.

Isto tudo disse-me ele falando dela. E ela, ao meu lado, ouvindo-o, não concordou, apenas aceitou. Diante deles, a mim restou-me ficar em silêncio, testemunhar a serenidade dos copos vazios sobre a mesa. Não soube o que dizer, a subtil e delicada forma com que os dois me olhavam deixou-me ainda mais mudo. Claramente, ali, entre eles, eu estava a mais, sem culpa, sem papel a desenrolar, o voyeur de ocasião, espectador inopinado de um desabafo verdadeiro ou falso ou somente apócrifo.
Deixei-os. Desconheço o que disseram depois. Quando voltei já não estavam e dos copos sobre a mesa nem o vinco sobre a toalha restava. Do que eu ouvira dele sobrava um rumor esmorecido, e dela uma réstia de silhueta imprecisa que tanto era sombra como perfume.
Adormeci mais tarde e dos sonhos que tive, um terá sido com o que ela não disse, e no discurso que proferiu eram mencionadas outras razões para o mesmo desfecho. Havia isso em comum, o desfecho: 

eu a regressar e eles já lá não estarem; sobrar uma brisa do que ela dissera e dele um perfil de penumbra; sobre a mesa o deserto imaculado que dois copos vazios não chegaram a povoar.

Não sei dizer estas coisas de outra forma.

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