deixar umas palavras antes de ir

deixar umas palavras antes de ir

definitivamente o privilégio de semear partidas e voos para longe
de mergulhar na ausência da rotina para a ela poder voltar de olhar cheio
comungar com outras sombras e cheiros
com outros silêncios distintos
de abraçar o infinito de mundos que nos calhou descobrir

e no fim reencontrarmo-nos diferentes e iguais
regressando ao mesmo lugar sendo ele então um outro lugar
porque no fundo seremos nós uma outra pessoa

e se aqui andamos é para isso
para sermos tudo o que pudermos ser

nada teu exagera ou exclui

dos solos

os velhos hábitos são teimosias disfarçadamente inatas
são o erro recorrente de se fazer uma mesma coisa esperando um resultado diferente

mas fazem parte do que somos
e quando o chão se torna estéril a culpa não é da semente nem do lavrador

sim, o lavrador poderia ter tido mais cuidado
e sim, a semente poderia ter tido um outro vigor
mas quando o solo se esgota não há cuidado nem vigor que dêem fruto

mas nem a semente perdeu a promessa que carrega
nem o lavrador perdeu o sonho de colher

apenas precisam de outros solos

e outros solos buscarão nesse velho hábito de errarem
de inequivocamente serem eles próprios

e a fruta terá outro sabor e portanto outra fruta será
e o lavrador outra colheita fará portanto outra pessoa tornar-se-á

e do solo brota sempre a verdade
mesmo feia quando o é
mesmo triste
mesmo nada quando dele nada nasce mais

resta a única certeza absoluta
mais cedo ou mais tarde
ao solo, semente e lavrador voltarão


a perspectiva cósmica

a perspectiva cósmica
tê-la presente nos desencantos que nos calham
saber que tudo isto foi forjado há uma imensidão de ciclos atrás, num mar inicial de indescritível cenário
uma fornalha densa sob a força inquebrável das regras elementares, agregando átomo a átomo, fissurando-os, disparando-os em alucinantes trajectórias onde o caos era a linguagem divina e onde todos os elementos se geraram
para daí iniciarem uma viagem improvável até à ínfima possibilidade de semearem aquilo a que chamamos vida

essa perspectiva poderá não calar uma dor, sarar uma ferida ou lamber uma lágrima
mas pelo menos, no fundo da alma, iluminará a esperança de regenerarmos
pois também nas catacumbas dos genes, no silêncio microscópico do ADN nada se perde, nada se cria e tudo se transforma
e o gume da dor se suavizará, a cicatriz das feridas se esbaterá e as lágrimas evaporar-se-ão em nevoeiros feitos penumbra


a teoria

Era uma avenida larga e a noite cobria a estrada, os prédios altos que a ladeavam e todo o céu por cima. Somente nas esquinas os lampiões derramavam uma luz baça e poeirenta que esmorecia assim que chegava ao chão. Metido na gabardina e no chapéu, um homem caminhava junto aos prédios.
Recordo-me dele e das suas teorias. Tínhamos falado uma vez numa madrugada de cigarros, cervejas e música aos berros num café perto da praia. Segundo ele, neste tipo de avenidas nocturnas e desertas, estavam nas caves de todos estes edifícios, uma infinidade de homens e mulheres sentados cada um numa mesa a bater à máquina horas e horas a fio. Contou-me que eram empregados por um louco cujo sonho era alcançar o texto mais belo de sempre. Apostava no acaso, sabia que a chave de tal texto existia na incomensurabilidade de combinações existentes no teclado das máquinas de escrever, que a matemática e a probabilidade eram algo real, algo possível. Não se sabe ao certo quantos escribas teria já ao dispor na sua demanda, mas o homem da gabardina jurava-me que o numero ascendia aos milhares e que o recrutamento não terminava nunca. Dizia também que o louco revia todos os textos ao amanhecer, que os olhos de tanta leitura tinham-se afundado por dentro do rosto numa miopia astronómica. Via já tão mal que o olhar tinha dado a volta do imaginável e que por isso, agora, via tudo.
A avenida continuou silenciosa e o homem atravessou-a, ficaram apenas os lampiões a diluir a luz leve no breu denso da madrugada. A mim, pareceu-me ouvir o rumor continuo do bater das maquinas de escrever vindo dessas caves profundas, mas poderia estar enganado. 

biblioteca

Disse-me o meu pai uma vez que a melhor escola para um escritor é a biblioteca. O sentido de tal afirmação entende-se facilmente: ler e ler muito para poder tentar escrever depois.
Mas a dita frase é aqui colocada apenas por uma razão (de toda as almas vivas no mundo, somente a presente e mais uma poderão alcançar. Imaginemos a vertigem de tal coisa). Razão essa que é a palavra biblioteca. E à razão e à palavra voltarei em breve, mas, primeiramente, convém dizer que, ao fazê-lo, quebro a regra sagrada que me impus na minha relação com a escrita. Regra essa que fica muda e secreta.
Porquê então a palavra biblioteca? Porque amanhã, ou hoje (ou daqui a mil eternidades, dependendo do momento da leitura), gostava muito de poder estar num jardim cuja entrada tem 4 esculturas representando as estações do ano, onde pavões se esgueiram entre flora caleidoscópica e, sobretudo, onde se ergue um templo de livros.
E escrevo por impulso, o medo, a vergonha ou o arrependimento que venham depois, se vierem.
A ridícula verdade é que amanhã gostava muito de poder ir a uma biblioteca mas não posso.

E isto deu um texto.

assim

assim
na absoluta quietude do que já foi
daquilo do que definitivamente já não é
na tempestade silenciosa da escuridão
no tecido do mais profundo breu
(onde a noite é tão espessa que nem a luz da infinidade de estrelas existentes penetra)
jazes na solidão de tudo

e a paz é isso, a ilusão de que o que sentes paira como um rumor leve sob as águas do teu próprio lago

então um verbo nasce-te na língua e nas mãos

alcançar

é um verbo que não o é
uma intenção abstracta
uma possibilidade
uma hipótese
um se
um gesto por desenhar
um sonho portanto

e nas palavras cumpre-se, ficando ainda assim aquém, como é de sua natureza
de outra forma não poderia ser

e já nem de ti depende porque neste pasmo derradeiro reside a verdade final de tudo
o verso preciso que remata a tua alma
e mesmo que não o saibas ler ou dizer
em ti se pronuncia como um tremor vindo de uma esquina por descobrir e dobrar
percorrendo todo o teu corpo
um estremecimento tal que mesmo estando tu quieto
a silhueta da tua sombra estremece no contraste das paredes nuas da sala
e aí ecoa vibrando e desvanecendo muito devagar como um peão que rodopia até se calar

assim.

dia limpo de sol


hoje foi um dia limpo de sol
todo o azul possível derramado no firmamento
e sobre o mar uma manta de luz estilhaçada até ao horizonte a vibrar como quando olhos se inundam de lágrimas 

na praia um leve sono esquecido a salgar sobre as pedras
e de algas e areias se ergueram castelos irreais onde gaivotas descansaram logo após um esquisso de voo infinito
daqueles voos que mesmo depois de cessarem se prolongam num outro desenho e num outro céu por dentro de nós
quais tatuagens de alma
cicatrizes de uma outra pele ou lembranças do que nunca chegou a ser

trilogia do início - antes do antes

trilogia do início

I

antes do antes

agora sim, o silêncio mais profundo, aquele cujo rumor é feito dos ecos do que fomos, tudo polvilhado por aí entre as sombras invisíveis dos gatos ausentes, sem gestos felinos que se vejam nem olhares que se cruzem

há a possibilidade de todas as coisas e a impossibilidade de coisa nenhuma
escorre das paredes um musgo primordial, um magma do tudo por vir, como lá no infinito do longe nas fornalhas das estrelas e galáxias onde os elementos se moldam sob a pressão das regras elementares, agregando átomo a átomo, criando aquilo que precede os sonhos, as desilusões, os sorrisos, as paixões, as tardes de sol, as esperas nas paragens de autocarro

agora ainda não é agora
é quase
porque o caminho dos elementos forjados no cosmos até ao cintilar da vida na Terra, levou eternidades
precisas também tu das tuas eternidades
do lento correr dos dias, dos silêncios, da solidão e sua penumbra envolvente

por isso, o tempo de tempo precisa para se revelar novo, de novo, inocente.

antes do antes.

escrever, a loucura inevitável


a escrita ausente da tua rotina por força de uma preguiça que te povoa desde que te conheces
 
escudas-te na inspiração que te visita a espaços
que se molda numa falsa perfeição, numa aparente verdade que julgas alcançar
 
e isso te satisfaz fugazmente, como um arrepio, um orgasmo, um papel atirado de longe para um caixote
 
na verdade para escreveres precisas de duas coisas: ler (e isso cumpres) e insistir no erro permanente de tentar (isso já não cumpres)
 
errar sempre, errar melhor, teimar, marrar, sentares-te todos os dias e estatelares-te no branco silêncio das folhas, fazê-lo com casmurrice irredutível, com uma fé no absoluto desalento de escreveres nada e nada
e muito nada e ainda mais nada de jeito
 
recorda-te de um professor que tiveste ainda na escola
um homem que entrava a declamar poemas em alemão numa aula de francês
um homem com cara de cientista louco
e que perguntava com uma certeza inabalável lá no meio:
"quando nada tens a dizer, o que dizes?"
 
e leva isso contigo, a partir de agora, todos os dias para o que tens a dizer
 
e escreve, pouco, muito, muito pouco, muito mal
 
constrói uma disciplina férrea e dedica-te a ela como um culto
fá-lo secretamente, nas sombras, na quietude
ou à luz do dia, no corpo por tatuar dos teus cadernos silenciosos
regressa aos cafés onde mergulhaste no passado, semeia-te na tua nova sala e colhe o que as esquinas te ditam
compõe prosas e versos mutilados pelo teu atabalhoamento
faz da palavra o escape de uma voz por descobrir como dizia o Cohen
encontra-te com todos os vultos ainda por moldar
sê o que nunca imaginaste
e quem sabe talvez possas, como sempre, deixar mais esta promessa por cumprir
e é sabido que enlouquecem os homens que não cumprem as promessas
mas tu sabes também, que muitos enlouqueceram
por promessas terem cumprido
 
escrever, a loucura inevitável.

dos falsos cometas


dos falsos cometas
 
diziam, no início dos tempos, que a palavra, quando nasceu, trouxe nela todo o possível
toda a verdade e, claro, toda a mentira
no infinito total da lotaria que o léxico nos oferece estão as mais belas declarações de amor bem como todas as incompreensões e ilegíveis afirmações
 
o poeta opta perante este céu imaculado de fim da tarde usar a expressão de falso cometa para descrever o rastro que lá no alto ecoa
 
eco esse que fica para sempre, pois tatuado em verbo nada o apaga mais
pois suas ondas de ressonância dispararam em direção aos confins de tudo isto
 
talvez esmoreçam no profundo cosmos, ou se consumam nas fornalhas distantes criadoras de elementos e galáxias
 
mas não morre mais a sua lembrança
 
um céu, um traço, um amontoado de palavras
haverá poder maior?