outra coisa


aguardam o momento certo para se elevarem também na galeria nua da tua sala, pois já na tela se elevaram quando o artista as alcançou
o silêncio profundo de uma pintura por pendurar
qual rumor do mar nas madrugadas solitárias
 
existe um lugar especial entre o momento presente e o momento futuro, um entretanto impossível de perceber, de afagar, os quadros por expor aí se encontram, num limbo incerto de cronos
a planície imensa de uma ideia ou de um sonho estende-se nos gestos adiados das nossas vidas
 
se por um lado tenho de pendurar quadros, por outro lado gostava de fazer uma outra coisa
 
e se escrevo sobre telas encostadas ao solo não é sobre telas encostadas ao solo que quero escrever, é sobre a outra coisa

trovões silenciosos

 
 
é em certas esquinas de espuma e chumbo que se formam os trovões silenciosos
ondas profundas da alma onde cardumes de peixes por inventar nadam em uníssono
como vagas de harpas em mãos de sereias sem rosto
ah como sonho em ser um desses lobos do mar que o sol queima
e cuja pele é esculpida camada a camada até serem estátuas de sal negro onde no lugar dos olhos está somente
o oceano inteiro
relâmpagos cegos que desenham a noite num breu tão denso que nos chega apenas o rumor do possível 

ao dia mundial da poesia


o tempo que não se deixa enganar, que nos leva inevitavelmente à derradeira igualdade que é o silêncio

por isso aquilo que nos distingue não será a quietude a que estamos destinados
mas antes o assombro que possamos criar nos entretantos
as ondas de impacto que gerarmos com a alma, com um sorriso ou com um gesto
as sombras que consigamos deixar para trás
os vôos que alcancemos em desenho para lá de nós
a entrega sem medos ou com todos eles que façamos ressoar nas noites profundas da cumplicidade
a poesia, esse silêncio que se diz que interrompe a pequenez que nos eleva e nos coloca no berço da pertença

pertencer a alguma coisa
nem que seja a nós próprios

a mais absoluta das belezas

Na verdade, nunca sabemos o que queremos e ainda menos sabemos do que precisamos. As necessidades do espírito movem-se por caminhos dúbios, revelam-se de formas inesperadas. Mas se de incertezas é a vida feita, ela acaba também por ser feita de algumas certezas. Tudo isto para dizer que precisava de cá voltar. Ao Douro. E é certo, igualmente, que terei sempre de cá voltar, de cá perder o olhar para poder, no fim, reencontrá-lo renovado e inocente uma vez mais. A alma tem curiosas formas de se revelar, de se render, e nada como um banho de xisto e de silêncio, de esforço de seiva e de sangue para renascer no mesmo deslumbramento de sempre.
Não há nada igual a isto, não há mesmo. Este rio, estes montes, estas vinhas. Porque o Douro é o impossível, o inimaginável. E de todas as vezes é sempre uma primeira vez, um permanente reencontro com o início e com a inocência. Porque não há habituação à mais absoluta das belezas como disse o Torga.