as árvores ao contrário

as árvores ao contrário
as raízes no cimo, magras e histéricas viradas ao céu, recortando os veios em contraste com o branco das nuvens pálidas
em silêncio petrificado, um esforço derradeiro de seiva, em vão por agora
talvez mais à frente na combustão da primavera recuperem e disfarcem em folhagem o esqueleto real que vão sendo
o que revelam para já é a contradição da própria existência
a batalha contra a força invisível da gravidade a cada ramo que se ergue um pouco mais e a luta assombrosa de cada raíz que rompe o atrito do subsolo, pela terra e pedras que as trava
as árvores hibernadas delas mesmas, quietas em silhueta, pilares de nada, monumentos do mais profundo desconhecimento

mesmo sem palavras II

mesmo sem palavras todo o impossível acontece
secretamente
veladamente
por entre os silêncios mais subtis, como brisas, indícios, ecos

no infinito de sermos, de estarmos por aqui face ao fim do chão, na queda eterna de uma paisagem, a alma é quase palpável, maleável
e mesmo sem jeito ousamos manusear esse tecido divino da solidão, da mais profunda solidão, como se a melancolia por momentos se ouvisse no ar

mesmo sem palavras, existes, tu e todo o estremecimento que me lanças, como um rumor de dentro, um vulcão invisível

na mudez do cosmos, na incomensurável lonjura das cassiopeias, no mais escondido canto do mundo, a possibilidade de todas as coisas jaz, ainda que ténue, ainda que esmorecendo a cada instante

a esperança é a última coisa a morrer, seja a esperança das coisas belas como a das mais ignóbeis

mesmo sem palavras todo o possível não acontece nunca

mesmo sem palavras

gastaram-se todas as palavras, nos seus lugares largos desenhos de gestos vazios e olhares distraídos, a chuva caindo sem parar há mil anos, o silêncio profundo das almas mudas semeadas pelas ruas
 
sem palavras ou apenas as ruinas do que foram, a quietude é imensa e sob a chuva velha reina uma paz ignorante, esvoaçam os desenhos e silhuetas dos acenos e perdem-se ao longe no firmamento os olhares do mundo inteiro
 
melodias secretas ondeiam pelas esquinas, o tempo feito bruma esfumando-se pela madrugada até nascer o dia definitivo, final, derradeiro, lançando sobre o oceano toda a luz imaginada, estrelando o mar em mil sóis irrequietos
 
mesmo sem palavras dizem-se coisas, pensam-se ideias, amam-se sonhos
mesmo no mais ruidoso silêncio fulminam-se emoções, daquelas que corroem os espíritos, que enlouquecem os seres
 
mesmo sem palavras todo o impossível acontece
 
 

sombra sobre sombra

o que cobre parte da tela é uma sombra perfeita
desenhada no pretérito pela passagem de luz por uma jarra sobre a mesa. o que sobra é a alvura do inexplorado
é o reflexo total da gama cromática
revelando
por isso
o branco restante do quadro
 
o desenho em penumbra da jarra vai movendo-se ao ritmo do sol
(na verdade o que se move somos nós e todo o globo na translação)
e esse movimento varre durante horas toda a tela ensombrando um lado e desensombrando outro onde antes jazia. a sombra é firme mas não tem a densidade da noite que virá mais tarde
ela desenha o contorno definitivo da silhueta da jarra em pequenas nuances de cinza.
 
por fim alguém pousa um outro objeto sobre a mesa e uma sombra maior projeta-se sobre a tela cobrindo o esboço de jarra
sombra sobre sombra
mais densa agora mais parecida com a noite
sombra sobre sombra tecido de breu
de treva
 
do quadro fica apenas um canto branco tudo o resto enoiteceu como se o silêncio se desenhasse e se fizesse traço
mesmo que tudo seja luz
fotões átomos
sombra de sombra
cisma
poeira estelar
combustões cósmicas
poesia
tu

pede-me versos

pede-me versos a noite
e finalmente cedo
como um vício
um arrebatamento da alma

e por isso mesmo
sendo um vício
nem sempre é bonito de se ler

testamento

deixo tudo
como tudo se deixa quando se apaga

deixo nada
como nada se deixa quando se some

e o meu testamento é igual ao de todos os homens
vazio e silencioso
um infinito de nada

certamente ecos do que fiz permanecerão algum tempo
vibrando na lembrança de alguns
mas tudo o tempo consome
tudo o tempo dilacera e fulmina

a própria carcaça mingará até ser pó
até regressar à quietude que é definitiva

deixo tudo e deixo nada
as próprias palavras espelho disso mesmo
som e silêncio
ideia e deserto
finais e fúteis