Memória e amnésia

Poderia ter passado os olhos pelo livro e ser apenas isso o que aqui me traria. Mas não, passou os olhos e os olhos lá ficaram, ancorados nas palavras que lá estavam. E dito isto há que dizer o resto. As palavras diziam coisas, o que por si só não chegaria, mas as coisas que diziam eram da mais profunda beleza, da mais redonda e perfeita poesia. Como não prenderem-se e perderem-se então os olhos por lá? A beleza é isso, o íman, a vertigem, a gravidade com o peso de sua infinita e inquebrável lei.
Mas para ser sincero, no limite do que a sinceridade permite num exercício destes, o que me traz aqui será uma outra coisa que não a perda dos olhos de quem os passou pelo livro. O que me traz aqui é algo que esqueci. É sabido que o olvido ocorre quando se julga estar perante o que se revela ser novo. Mas de novo nada existe, apenas o esquecimento renasce, cada vez mais perfeito, mais intenso nessa força bruta que é a inspiração.
Do livro ficam os ecos e as citações sublinhadas a lápis e uma nova leitura no muito mais futuro que o daqui a pouco. Do solene e reverencial ato de esquecer e julgar-se frente ao que nunca antes existiu, fica, tão só, um equívoco, pois apenas existe memória ou amnésia e o meio termo de ambos.
Chegamos, por isso, facilmente à conclusão de que memória e amnésia são uma e a mesma coisa, tecido do mesmo pensar, firmamento do mesmo cosmos.
Existiram povos cuja literatura foi revelada através do esquecimento, as histórias não chegavam ao fim porque ninguém o conhecia, e em poucas gerações nem o início das histórias sabiam. Outros povos porém, a literatura revelava-se através da memória e do seu crescimento exponencial. Não tinham fim tão pouco essas histórias pois os detalhes eram tantos que jamais se chegava ao final, e em poucas gerações nem o início conseguiam contar porque a memória começava antes do início, no antes.
Quando, num acaso, o equilíbrio entre memória e amnésia for perfeito, imagino alguém passar os olhos por um livro e aí os deixar, para sempre, e um outro escrever sobre isso. Ou pelo menos tentar.

negro dos abismos


quantas noites permanecerão intactas
no fundo do mar
Al Berto
 
Existem silêncios desconhecidos. Propagam-se em territórios por descobrir, vales, desertos e montanhas onde a audição humana não chegou ainda. Corpos existem também ignorados. Curvas e peles e regaços onde as mãos dos homens não se perderam. Sabores velados ao palato, aromas segregados dos olfatos. quantas noites permanecerão intactas no fundo mar?  Um infinito delas, quantas forem possíveis no tecido negro dos abismos.

ao mais profundo infinito

surge a ideia
e esculpes o que podes
através do mármore alvo do silêncio

esperas poder em breve
num gesto final
passar as mãos sobre a obra
sentir-lhe as curvas suaves das imperfeições
as hesitações e as falsas certezas da criação

apercebes-te que o tempo passa e que sobre cada verso
cai um outro mais abaixo
e outro ainda
uma vez e vezes sem conta

temes que com todo o peso acumulado
se desmorone a poesia e te esqueças do início
da tal ideia primeira
cujo silêncio esculpiste em mármore silencioso
 
e esse medo não faz senão crescer
medrar

e a dado momento sentes a tentação de voltar ao cimo
de largar a leitura do agora e recomeçá-la do alto mais pousado
mais pousada a leitura desta vez
 
mas depressa outro temor nasce
brota

se por acaso voltar ao início
se ceder à tentação do recomeço
não perderei então o presente
não me atrasarei irremediavelmente
não haverá sempre um verso mais abaixo
e um outro e um outro ainda
cuja leitura já foi profanada num à frente
num porvir inalcançável para os meus olhos?

chegas por fim
a um daqueles momentos de revelação
concluindo
que os poemas são o tecido do tempo futuro
têm um avanço decisivo sobre nós
são a materialização presente do futuro

talvez a ciência consiga explicar estas coisas
e provavelmente
a explicação virá em fórmulas
cuja a forma
será
necessariamente
versos
uns sobre os outros
sempre
caindo um após outro
numa queda de poesia ao mais profundo infinito

a criação

incendiaram-se as noites num clarão
atirando sobre o mar negro uma sombra ainda mais vasta
desenhando o fogo prometido o fogo já escrito
a combustão derradeira das almas a supernova esculpida pelo pai de cronos
o aniquilar final de toda a dor inquietação e o seu contrário

não são premonições o que se escreve
não são certezas ou sequer possibilidades
não são ideias não são versos
não são nada

o clarão queimou a noite
semeando cinza por todo o firmamento
derramando as labaredas já faladas as chamas já gravadas
o lume último dos espíritos a explosão estelar atiçada por urano
o funeral de toda a pena angústia e o seu oposto

o ato primeiro
o gesto inicial
o acaso de uma palavra se seguir a outra e assim em diante
até à exaustão das infinitas possibilidades e no meio delas
no tal clarão
surgir poesia
como surgiu a vida nesta terra

rosetta

Pensar na imensidão de tudo isto, no vazio quase infinito entre tudo o que existe, imaginar que algo por nós criado foi pousar lá longe no silêncio, no gelo, na maior das solidões, num cometa. Imaginar que, devido à distância, apenas 28 minutos depois chegou-nos a confirmação, via rádio, cujas ondas viajam à velocidade da luz. 28 minutos luz de distância, um número cheio de zeros que somente nos faz mingar em humildade perante o espaço do espaço. Se tudo isto não nos emociona, nos não remete para dentro, não nos silencia em comunhão com o mais profundo da alma, então o que o fará? Saber isso, tão só, que lá longe, no gelo, na imensidão da noite cósmica, na maior das solidões, algo nosso pousou, e que isso, faz com que fossemos nós todos a lá pousar.

a noite mais escura

era uma noite tão negra que até os cegos se perdiam, tão escura que as minhas próprias mãos não se encontravam se se buscavam, nem a elas nem ao resto do corpo imagine-se,
até o mar se desregulava entre as ondas e o momento do som do rebentamento,
a chuva caía antes de ao chão chegar, o vento tinha o atraso da luz e do movimento dos ramos,
era uma noite tão escura que as próprias palavras do pensamento confundiam o caminho, desapareciam antes de formularem uma ideia,
era uma noite tão feita de breu que o amor, sim, o amor, ficava-se pela semente e a poesia não chegava a ser,
era uma noite tão obscura que a música soava ao contrário, o tempo, ele próprio, trocava horas minutos e segundos,
noite tão noite que as estrelas luziam negrume e o silêncio encolhia-se como pássaro medroso,
nem tu brilhavas da noite ser tão negra, nem tu, nem nada