Nadas

Curioso como do silêncio podem brotar outros silêncios. Imaginar-se-ia que da quietude poderiam nascer ruídos, rasgos de um qualquer rumor ou murmúrio, sopros leves, brisas ténues, tímidas. Mas do silêncio, por vezes, em noites mais escuras, mais densas, geram-se outros silêncios, sossegos, omissões, nadas.

A casa

A casa era velha. A velhice revelava-se no musgo crescente que invadia as dobras da pedra e da madeira. Mas sobretudo no rumor de abandono que circulava entre os corredores escuros e os quartos desertos. A cozinha era apenas uma banca de caruncho e uma mesa manca a meio. O salão quieto e silencioso dormia ao sabor das cortinas rasgadas. Todo o mobiliário coberto de pó e de uma ocasional teia de aranha já gasta. O peso do tempo vinha abater-se sobre o chão nu de carpetes, escorrendo do teto e dos quadros tortos nas paredes. Lá fora o jardim eram silvas e folhas acumuladas de muitos outonos. Um dia toda o jardim engolirá a casa, e de velha que é tornar-se-á húmus e orgânica, comida de bichos, vaso de plantas, ténue desenho do que foi outrora. Noutro dia ainda, mais há frente no desenrolar das eras, o mar inundá-la-á. E se ousarmos imaginar épocas ainda mais futuras, o cosmos encarregar-se-á de tudo engolir num tufão celestial de estrelas e galáxias em movimento até ao aniquilar final. Nem as palavras sobreviverão a esse cataclismo. No fundo, o silêncio derradeiro da casa velha já há muito foi pronunciado.

O porvir

A rua desenha-se em frente como se o asfalto se revelasse aos soluços por entre o nevoeiro. A cada dez passos novo tapete negro malhado de traços brancos sinalizando as regras de trânsito, relembrando-nos a civilização que vamos sendo. Os romanos optaram por pedras, rios petrificados, serpenteando o mundo da altura, brotando de Roma qual nascente parideira e desaguando noutras cidades. Sobram ruinas e cicatrizes, os novos caminhos de alcatrão, como este que se veste de neblina, imitam a função, são ecos desse propósito ancestral do viajante: avançar. Como as palavras que dizemos hoje são palavras que outros já disseram antes de nós.
O nevoeiro há-de esfumar-se e a estrada estender-se-á na plenitude, revelando não apenas distância mas igualmente o futuro. O porvir é o destino ao qual tão somente ainda não chegámos.

Escrever

Escreves. A partir de hoje escreves todos os dias. Nascerá na alma essa vontade, mas para além disso, pedirá também uma vontade do corpo. É certo que tudo começa antes, talvez num sonho divino ou na escuridão do cosmos, porventura inicia-se em algo predeterminado ou fruto do acaso, mas depois do antes desagua-se inevitavelmente no corpo, por isso, para escrever é necessário que algo de físico aconteça, que no cérebro ocorram coisas que a neurologia explique e a bioquímica exemplifique, que daí resulte algo mais tátil, que os músculos, cartilagens, tendões e ossos façam o seu trabalho. Para escrever será então necessário que se puxe uma cadeira, que haja papel, seja ele de pasta de madeira ou digital, que haja tinta ou teclas e dedos a desenhar ou dedilhar. Que se coloquem letras umas à frente das outras, e uma letra é sabido vem de longe, vem dos inícios de sermos gente antes ainda de se escrever, de quando deixámos de ser macacos e passámos a ser estes macacos específicos, que uma letra representa uma convenção e que uma convenção representa outra coisa qualquer que se calhar os idos formalistas russos explicavam. Mas que se fodam os formalistas russos, apesar de lhes reconhecer o mérito de terem sido formalistas russos, mas bom. Escreves e isso nota-se, e depois dessa vontade ter nascido na alma, nos infinitos do espaço ou no tédio de um deus qualquer, passou pelo corpo que teve finalmente de traduzir alguma coisa em palavras. Escrever dá um trabalho de milénios, escrever é ser-se todo o silêncio de uma vez e todo o ruído que nunca se ouviu.
Escreves e a partir de hoje fá-lo-ás todos os dias.

Dos quartos do passado

O passado será um país distante repleto de neblinas.
Houve quartos povoados apenas por uma cama, uma secretária, papéis com versos e, por breves horas, por um corpo de mulher. Quartos cujas manhãs se esvaziavam de ti e as rugas dos lençóis desenhavam estranhas formas sobre o colchão. Janelas por onde a claridade era fatiada por persianas meias fechadas, criando contornos de sombra e luz sobre as paredes. O silêncio era imenso mas leve e o aroma do calor da noite prolongava-se até tardias horas. Por vezes regressavas e fazia-se noite de novo e tudo recomeçava renovado, como se nunca nos tivéssemos tocado, beijado e amado. Amávamo-nos como estranhos de cada vez, sem preconceitos, sem antes, sem antecedentes, como uma página em branco, novos rabiscos, novas tentativas, novo ensaio.
E no fim uma vez mais o quarto e a quietude familiar das manhãs vazias, vazias de ontem e cheias de brilho, de promessa de mar para lá do vidro, da janela e da estrada. Cafés do lado de fora esperando uma bebida.
O passado será um país distante repleto de neblinas, ficam os textos antigos aqueles que se salvaram. Os outros que se calaram descansam então nesse país distante entre nevoeiros e amnésias. Certeza é que um quarto vazio de nós existe algures, nenhures, em zero absoluto.

hoje não houve céu

hoje não houve céu
e ainda agora, com o breu da noite caído sobre as ruas
nada alumia de cima
as nuvens cobrem tudo com uma cor de chumbo
desse manto negro há tons de penumbra que desenham ténues traços de alguma coisa no firmamento
mas sem céu tudo se resume ao chão
como se se erguesse de repente e inundasse tudo o resto
sem referências que não o solo sem horizonte sem teto sem paredes sem estrada pois tudo é raso tudo é uma dimensão
se fosse poesia
seria um verso só
só e apenas
hoje não houve céu