Voltar a casa

Ser-se de lugares vários. Poder dizer-se que se regressa a casa e não ser sempre o mesmo destino. Por uns dias, reencontrar um lugar com cheiro a passado, um lugar tatuado no tempo, retalhado numa infinidade de momentos, cravado no fundo da alma, com toda a magia possível de se reerguer ao presente e embalar-nos numa melancolia tão doce, tão suave, que o infinito se sente a resvalar em cada poro. Voltar a casa, é um estado de espírito.

O revés

Terá contado histórias, todas as histórias. Mas não ouviste, estavas demasiado preocupado com a espuma da cerveja a deslizar do copo, ensopando o pousa-copo de cartão. Terá dito coisas, todas as coisas. Mas não tomaste atenção, perdias-te nas espirais do fumo dos cigarros dos tipos ao lado. Terá explicado o que aconteceu, tudo o que aconteceu. Mas não entendeste, vagueavas o espírito pelo lado oculto do que ele contou, disse e explicou, que é como quem diz, vagueavas pelo lado oposto de tudo isso. De todas as histórias que ele contou, de todas as coisas que ele disse, de tudo o que aconteceu e ele explicou, nada retiveste, criaste antes, à volta disso, tudo o seu contrário, todas as histórias que ele não contou, as coisas que ele não disse, e tudo o que não acontecu e ele não explicou. Como se ele ao falar-te, provocasse em ti, o revés, o reflexo

do silêncio

apenas do silêncio poderá brotar a palavra definitiva, perfeita e limpa
a palavra final que te dirá tudo de uma vez, de uma só vez, de uma só e irremediável vez
dessa palavra brotarão outras, ecos, reflexos, imparáveis, povoarão os recantos mais profundos, as terras mais longínquas, as montanhas mais altas
e quedar-se-ão mudas uma vez mais, sopros quietos na solidão universal,
apenas do silêncio poderá brotar mais silêncio

Escrever-te amor

De quando as últimas palavras que te escrevi? Essa ideia do amor que me assombra desde sempre, desde o antes. Essa rendição total do ser. A emoção que é o teu olhar a galopar-me a alma, o arrepio silencioso de te dizer "tu" e o rebentar na boca do pronome e de tudo o que ele carrega, por dentro, por fora, por todo. Escrever-te como no tempo em que a sala com vista para o mar era o palco perfeito para a poesia, com uma quietude tal que os quadros nas paredes murmuravam ecos dos seus traços. Evocar-te pelo verbo, pelo infinito definido e preciso de te amar ali, no agora, no imediato, e sentir ao mesmo tempo que não tinha corpo nem pele que chegassem para o compreender totalmente, porque escrever-te palavras de amor era a evidência de que jamais conseguiria fazê-lo por inteiro sem sangrar de vez numa síncope total, numa implosão de mim.
No fundo, escrever-te amor, é tão intenso que mais vale uma folha em branco e o mar infindo de todas as possibilidades.