MC

O meu afazer é não me ocupar de nada. A minha felicidade é perder pensamento, deixar-me ocupar por aquela leveza, esquecendo-me de que, perto, existe algo chamado «realidade». As garças cinzentas passam com lentidão de barco e parecem dar-me razão: o paraíso não é um lugar, é um breve momento que conquistamos  dentro de nós.

Mia Couto in Pensageiro Frequente
Prémio Camões 2013

ser

tenta o teu impossível, lança-te ao destino de pena em riste, enfrenta os silêncios e torna-os teus, ou pelo menos, torna-te parte deles na afirmação limite de se ser alguém, ou, quando muito, de se ser alguma coisa
pois sabes do poder dos verbos e sabes bem que o mais poderoso deles é o verbo ser

Das ramagens

Recordas a tal metáfora poderosa que te contaram um dia: há em África, uma espécie de árvore cuja ramagem é tão densa, tão densa, que mesmo ao sol do meio-dia, por baixo da sua sombra, quem olha para cima, parece ver o céu estrelado na noite, pois a única luz que passa pelas folhas e ramos, são pequenos pontos brilhantes quais estrelas nocturnas.
Claro que o poder da lembrança não chega ao poder da metáfora em si, que a não conheces na sua forma original, mas só a ideia te arrebata. A ideia da metáfora e a ideia de que alguém se lembrou dela e a escreveu. Duas ideias imensas, densas como folhagem da árvore, leves como a poesia.
Por cá, nestas latitudes as ramagens são mais leves.

livre

os silêncios a espreguiçarem-se nas ondas dos lençóis, a luz da manhã a inundar de sombra as paredes quietas,
já saíste e a tua ausência contigo,
fico eu e o teu lado vazio ainda morno, impresso na memória da noite já recolhida,
pelo quarto os sinais da tua ida matinal, o pijama, os chinelos, os colares, tudo semeado no acaso do sono interrompido, um rasto de perfume apressado
acordar sem ti e ter-te ainda assim, como quando acaba uma música e nos fica o eco na alma, ficas-me tu no corpo e no cheiro, no desenho tatuado da retina ensonada
acordo por fim e saio também
em casa ficará com certeza o nosso sopro, bailando no deserto humano que deixámos, enfim a sós, sem juízes, sem limites, apenas poesia sem leitor algum
livre portanto