2012

Assim de repente, 2012 foram dois momentos. Na calçada dos gigantes em terras celtas e sob o sol intenso da poeira marroquina de Fez... sempre atrás dela, o meu horizonte. Que 2013 seja assim também, seguindo-a.
 

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Prendas a mim

No rescaldo do Natal eis as minhas prendas a mim. Para já:
 
  • Creedence... uma paixão antiga cujo espírito ia aparecendo pela net mas que faltava aqui em casa fisicamente e que agora pode rebentar com as colunas quando a Lira for ao ginásio e o gato estiver a dormir lá para dentro.
 
 
 
  • Otis, a voz da Soul, também presente em espírito há muito e que agora pode lamber-me a alma naquela rouquidão imensa de quem sente tanto que arrepia. Seria a música que eu cantaria se fosse cantor, era a pose que eu teria se fosse artista. Nunca se chorou de forma tão boa.
 

 
  • O clássico que ainda não li. Em português porque em inglês seria para bater com a cabeça no génio. Disse Joyce sobre a obra: "Um instante de cio cego". Como não?
 
 
 
  • Até tudo ter dele, a biblioteca não descansa, nem eu. A rendição é assim mesmo.
 

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  • Quem um dia escreveu "a cidade acorda menstruada pelos seus próprios crimes" sabia que teria seguidores de culto.
 

Apenas manto leitoso sobre tudo isto

Enevoaram-se os prédios mais altos, escondendo o céu e os pássaros. Uma chuva miúda plana entre os ramos das árvores, descendo aos poucos numa morrinha leve mas teimosa. Há gatos escondidos sob os carros estacionados, vultos rápidos do lado de dentro das cortinas das janelas. O vento soluça roçando nos arbustos e espalhando ainda algumas folhas esquecidas pelo Outono. Metido num casaco encurralo-me ainda mais por dentro do cachecol e esgueiro-me por entre as paredes e muros das casas. Imagino o que seria um louco tentando apanhar todas as pequenas gotas de chuva que caem antes de chegarem ao chão. O nevoeiro continua alto, vazio de voos, ausente de céu, apenas manto leitoso sobre tudo isto.
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O princípio da incerteza

Andar de autocarro pela cidade, permite reparar em certas coisas curiosas. A escolha do lugar para nos sentarmos gere-se pelo princípio da incerteza. É ver as mulherzinhas com sacos de compras mais a carteira pendurada ao ombro, hesitando entre o primeiro lugar livre que encontram, um mais à frente junto à janela ou o do fundo entre o corredor e um rapaz de phones e carapuço. É do conhecimento científico que o primeiro lugar livre é 99% das vezes desprezado. O segundo lugar livre é escolhido mas normalmente trocado após uma paragem e meia por outro junto à janela. Todo este processo é feito com mudanças de direção rápidas, com os sacos a fazerem barulho e uma espécie de suspiros e murmúrios parecidos com rezas obscuras. Se juntarmos a isto as pessoas que quase perdem o autocarro e entram ofegantes de uma corrida desesperada, é inevitável, que no exato momento emaque entram e se desiquilibram à procura do passe ou da senha, um sorriso a fugir ao riso se lhes desenha no rosto nervoso, como se sentissem o rídiculo a cair-lhes em cima, o cenário completa-se. O autocarro ao arrancar volta a balançar todos os sacos e o braço que se agarra ao ferro funciona como um pêndulo, atirando o passageiro num semi-círculo, pedindo desculpa aqui e ali, um com licença já aborrecido, e a impaciência alia-se ao tal princípio da indecisão do onde sentar. A cada viagem um compêndio rico para a psicanálise.

O futuro

Num dos muitos cadernos esquecidos:
 
Gosto de acreditar que o futuro é feito apenas de nuvem. Não sei. É isto. Nuvem e céu por cima, azul e imenso. Isso.
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O homem que sabia tudo o que não tinha acontecido

Ele não sabia o que se tinha passado dentro daquele quarto. Mas incrivelmente sabia o que não se tinha passado. A ver se me explico: do que se passara lá dentro não sabia nada, mas enquanto olhava a porta fechada do quarto, caiu-lhe em cima, como uma torrente infinita de informação, tudo o que não se passara lá dentro. De todas as possibilidades, da incomensurável quantidade de acontecimentos possíveis, todos eles clarearam-se-lhe na mente, excetuando aquele que de fato tinha acontecido. Imagine-se, de repente, como um clarão de um relâmpago, tudo o que não se passara dentro daquele quarto era-lhe revelado.
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Descrição

Havia, ao longe, um muro eriçado de lascas, era a tinta que se descascava ao ritmo das sombras, do vento, do sol, do frio e do tempo. Por trás desse muro uma casa velha e abandonada espreitava penosamente por entre eras e musgo. As janelas já sem vidros engoliam um negrume espesso e silencioso. O telhado destelhado descobria barrotes de madeira escura e quebrada, vigiados por um esboço do que fora, em tempos, uma chaminé e que era agora nada mais que moradia de um ninho de cegonha pobre e esquecido.
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Lendo

Jorge Luis Borges. Vou lendo, a espaços. Ler poesia exige um silêncio por dentro. Nem sempre o encontro.

Os nossos nadas pouco diferem; é vulgar e fortuita a circunstância de que sejas tu o leitor destes exercícios e eu o seu redator.


(As ruas) São para o solitário uma promessa
porque milhares de almas inquietas as povoam


Às cegas reclama duração a alma arbitrária
quando a tem assegurada em vidas alheias,
quando tu próprio és o espelho e a réplica
dos uqe não atingiram o teu tempo
e outros serão (e são) a tua imortalidade na terra.


quando a luz, como uma trepadeira,
envolve as paredes da sombra

e a noite já gasta
ficou guardada nos olhos dos cegos
 

Céline era um nome que eu já ouvira e lera na boca de outros. Como sempre, caindo numa livraria onde um livro destes ficam por menos de 5 euros não pude resistir. E entrei nesta noite escura, neste relato até agora sarcástico sobre um homem que vive a guerra. Um homem cobarde com medo de morrer, igual a nós portanto.
 

- Arthur, l’amour c’est l’infinie mis à la portée des caniches et j’ai ma dignité moi!
- Arthur, o amor é o infinito posto ao alcance dos caniches e tenho a minha dignidade, eu!
 
On est puceau de l’Horreur comme on l’est de la volupté. Comment aurai-je pu me douter de cette horreur en quittant la place Clichy? Qui aurait pu prévoir avant d’entrer vraiment dans la guerre, tout ce que contenait la sale âme héroïque et fainéante des hommes? À présent, j’étais pris dans cette fuite en masse, vers le meurtre en commun, vers le feu… Ça venait des profondeurs et c’était arrivé.
 
È-se virgem do Horror como se é da sensualidade. Como poderia eu duvidar desse horror quando deixei a Place Clichy? Quem poderia prever antes de entrar na guerra, tudo o que continha a alma heroica suja e preguiçosa dos homens? Agora estava preso nessa fuga em massa em direção ao assassínio em comum e ao fogo… Vinha das profundezas e tinha chegado.
 
C’est des hommes et d’eux seulement qu’il faut avoir peur, toujours.
 
É dos homens e apenas deles que é preciso ter medo, sempre.

 
Dans ce métier d’être tué, faut pas être difficile, faut faire comme si la vie continuait, c’est ça le plus dur, ce menssonge.
Nesta profissão de ser-se morto, não se pode ser complicado, é preciso fazer como se a vida continuasse, é isso o mais duro, essa mentira.