Sobre a poesia

Ele disse-me que "algures, no passado" tinha abandonado a poesia. Disse-me que tinha de a abandonar, que "o caminho era perigoso". Foi por uma questão de sanidade, disse. Tinha uma forma de dizer estas coisas assim, metida no meio de tiques com as mãos, gestos imprecisos que levavam a cigarrilha à boca num equilíbrio precário.
Eu, a ele disse-lhe o contrário, que procurava a poesia, que queria muito inundar-me nela, que sentia uma necessidade profunda de fazer versos... mas que depois, não os fazia. Como se adiar fosse parte já dos versos.
Ele percebeu, disse que era assim mesmo. Que a poesia não é nossa, é etérea, volátil e fodida.
Acedi. Calei-me. .

Regressar a casa

 
Do alto ou do fundo, de perto ou de longe, no passado, no presente ou no futuro, regressar a casa é sempre um mergulho infinito. Mesmo quando nos afastamos, seja no corpo, seja na alma, voltar para contar o que vimos, o que sentimos, o que imaginámos, ou somente para nos reencontrarmos com o silêncio primordial do ninho, recolher aos braços do amante, do amigo, da mãe. Regressar a casa. Nem que partamos de novo, outra e outra vez, o regresso, seja de que forma for, é o momento que nos define. Até porque só regressa quem um dia ousa partir.
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Gato

Tem a cor do céu pouco depois de chover. Um cinzento que desvanece em morrinha. Os olhos ainda enevoados de juventude e um jeito de se esgueirar como a penumbra. Maleável como felino que é, serpenteando nos cantos, nos becos, nas esquinas da casa, em cada quarto entre cada objecto que de obstáculo transforma em brincadeira. Doce breve, macio como uma carícia. É gato quando está e é gato quando não está. Mia e ronrona, come e dorme, salta e aconchega-se a nós numa dança que nos vai teimosamente ensinando. .