2012

Assim de repente, 2012 foram dois momentos. Na calçada dos gigantes em terras celtas e sob o sol intenso da poeira marroquina de Fez... sempre atrás dela, o meu horizonte. Que 2013 seja assim também, seguindo-a.
 

.

Prendas a mim

No rescaldo do Natal eis as minhas prendas a mim. Para já:
 
  • Creedence... uma paixão antiga cujo espírito ia aparecendo pela net mas que faltava aqui em casa fisicamente e que agora pode rebentar com as colunas quando a Lira for ao ginásio e o gato estiver a dormir lá para dentro.
 
 
 
  • Otis, a voz da Soul, também presente em espírito há muito e que agora pode lamber-me a alma naquela rouquidão imensa de quem sente tanto que arrepia. Seria a música que eu cantaria se fosse cantor, era a pose que eu teria se fosse artista. Nunca se chorou de forma tão boa.
 

 
  • O clássico que ainda não li. Em português porque em inglês seria para bater com a cabeça no génio. Disse Joyce sobre a obra: "Um instante de cio cego". Como não?
 
 
 
  • Até tudo ter dele, a biblioteca não descansa, nem eu. A rendição é assim mesmo.
 

.

  • Quem um dia escreveu "a cidade acorda menstruada pelos seus próprios crimes" sabia que teria seguidores de culto.
 

Apenas manto leitoso sobre tudo isto

Enevoaram-se os prédios mais altos, escondendo o céu e os pássaros. Uma chuva miúda plana entre os ramos das árvores, descendo aos poucos numa morrinha leve mas teimosa. Há gatos escondidos sob os carros estacionados, vultos rápidos do lado de dentro das cortinas das janelas. O vento soluça roçando nos arbustos e espalhando ainda algumas folhas esquecidas pelo Outono. Metido num casaco encurralo-me ainda mais por dentro do cachecol e esgueiro-me por entre as paredes e muros das casas. Imagino o que seria um louco tentando apanhar todas as pequenas gotas de chuva que caem antes de chegarem ao chão. O nevoeiro continua alto, vazio de voos, ausente de céu, apenas manto leitoso sobre tudo isto.
.

O princípio da incerteza

Andar de autocarro pela cidade, permite reparar em certas coisas curiosas. A escolha do lugar para nos sentarmos gere-se pelo princípio da incerteza. É ver as mulherzinhas com sacos de compras mais a carteira pendurada ao ombro, hesitando entre o primeiro lugar livre que encontram, um mais à frente junto à janela ou o do fundo entre o corredor e um rapaz de phones e carapuço. É do conhecimento científico que o primeiro lugar livre é 99% das vezes desprezado. O segundo lugar livre é escolhido mas normalmente trocado após uma paragem e meia por outro junto à janela. Todo este processo é feito com mudanças de direção rápidas, com os sacos a fazerem barulho e uma espécie de suspiros e murmúrios parecidos com rezas obscuras. Se juntarmos a isto as pessoas que quase perdem o autocarro e entram ofegantes de uma corrida desesperada, é inevitável, que no exato momento emaque entram e se desiquilibram à procura do passe ou da senha, um sorriso a fugir ao riso se lhes desenha no rosto nervoso, como se sentissem o rídiculo a cair-lhes em cima, o cenário completa-se. O autocarro ao arrancar volta a balançar todos os sacos e o braço que se agarra ao ferro funciona como um pêndulo, atirando o passageiro num semi-círculo, pedindo desculpa aqui e ali, um com licença já aborrecido, e a impaciência alia-se ao tal princípio da indecisão do onde sentar. A cada viagem um compêndio rico para a psicanálise.

O futuro

Num dos muitos cadernos esquecidos:
 
Gosto de acreditar que o futuro é feito apenas de nuvem. Não sei. É isto. Nuvem e céu por cima, azul e imenso. Isso.
.

O homem que sabia tudo o que não tinha acontecido

Ele não sabia o que se tinha passado dentro daquele quarto. Mas incrivelmente sabia o que não se tinha passado. A ver se me explico: do que se passara lá dentro não sabia nada, mas enquanto olhava a porta fechada do quarto, caiu-lhe em cima, como uma torrente infinita de informação, tudo o que não se passara lá dentro. De todas as possibilidades, da incomensurável quantidade de acontecimentos possíveis, todos eles clarearam-se-lhe na mente, excetuando aquele que de fato tinha acontecido. Imagine-se, de repente, como um clarão de um relâmpago, tudo o que não se passara dentro daquele quarto era-lhe revelado.
.

Descrição

Havia, ao longe, um muro eriçado de lascas, era a tinta que se descascava ao ritmo das sombras, do vento, do sol, do frio e do tempo. Por trás desse muro uma casa velha e abandonada espreitava penosamente por entre eras e musgo. As janelas já sem vidros engoliam um negrume espesso e silencioso. O telhado destelhado descobria barrotes de madeira escura e quebrada, vigiados por um esboço do que fora, em tempos, uma chaminé e que era agora nada mais que moradia de um ninho de cegonha pobre e esquecido.
.

Lendo

Jorge Luis Borges. Vou lendo, a espaços. Ler poesia exige um silêncio por dentro. Nem sempre o encontro.

Os nossos nadas pouco diferem; é vulgar e fortuita a circunstância de que sejas tu o leitor destes exercícios e eu o seu redator.


(As ruas) São para o solitário uma promessa
porque milhares de almas inquietas as povoam


Às cegas reclama duração a alma arbitrária
quando a tem assegurada em vidas alheias,
quando tu próprio és o espelho e a réplica
dos uqe não atingiram o teu tempo
e outros serão (e são) a tua imortalidade na terra.


quando a luz, como uma trepadeira,
envolve as paredes da sombra

e a noite já gasta
ficou guardada nos olhos dos cegos
 

Céline era um nome que eu já ouvira e lera na boca de outros. Como sempre, caindo numa livraria onde um livro destes ficam por menos de 5 euros não pude resistir. E entrei nesta noite escura, neste relato até agora sarcástico sobre um homem que vive a guerra. Um homem cobarde com medo de morrer, igual a nós portanto.
 

- Arthur, l’amour c’est l’infinie mis à la portée des caniches et j’ai ma dignité moi!
- Arthur, o amor é o infinito posto ao alcance dos caniches e tenho a minha dignidade, eu!
 
On est puceau de l’Horreur comme on l’est de la volupté. Comment aurai-je pu me douter de cette horreur en quittant la place Clichy? Qui aurait pu prévoir avant d’entrer vraiment dans la guerre, tout ce que contenait la sale âme héroïque et fainéante des hommes? À présent, j’étais pris dans cette fuite en masse, vers le meurtre en commun, vers le feu… Ça venait des profondeurs et c’était arrivé.
 
È-se virgem do Horror como se é da sensualidade. Como poderia eu duvidar desse horror quando deixei a Place Clichy? Quem poderia prever antes de entrar na guerra, tudo o que continha a alma heroica suja e preguiçosa dos homens? Agora estava preso nessa fuga em massa em direção ao assassínio em comum e ao fogo… Vinha das profundezas e tinha chegado.
 
C’est des hommes et d’eux seulement qu’il faut avoir peur, toujours.
 
É dos homens e apenas deles que é preciso ter medo, sempre.

 
Dans ce métier d’être tué, faut pas être difficile, faut faire comme si la vie continuait, c’est ça le plus dur, ce menssonge.
Nesta profissão de ser-se morto, não se pode ser complicado, é preciso fazer como se a vida continuasse, é isso o mais duro, essa mentira.

Gato

Isto de ter um gato. Dou por mim a caçar vultos no canto do olho. A ver se me explico. Mesmo fora de casa, digamos, por exemplo, num corredor de supermercado a escolher bolachas ou cereais, desenham-se furtivos movimentos no canto do olho, movimentos esses que o meu cérebro traduz como sendo o raio do gato a esgueirar-se. Algo impossível naquele momento já que se encontra em casa e eu no supermercado. Mas é isto mesmo de se ter um gato, fica-nos na retina e povoa-nos os instintos. Ter um gato passa a ser um reflexo adquirido. Pavlov terá explicado isto melhor. Fico-me pelos vultos no canto do olho, que me fazem parecer, seguramente, paranóico. Não são lamechices, essa parte é a do mimo e essas coisas todas, falo de algo científico, do domínio da psicanálise, deixem-me em paz. Obrigado.

Sociedade secreta

Quando escreveste sobre um homem de casaco comprido e de chapéu que te seguia ao longe, adivinhaste-lhe nos bolsos fundos um emaranhado de papéis com versos soltos, sem rima, sem aparente sentido. Sabias que era um daqueles homens que pertencia à oculta organização que se dedicava a escrever sem parar. Queriam recurtar-te pensaste, mas descobriste que afinal apenas procuravam o que já tinhas escrito. Queriam, portanto, as tuas palavras. A razão só a soubeste mais tarde, quando te apanharam e prenderam. Antes de te abandonarem no deserto, com os dedos partidos e a língua arrancada, revelaram o seu segredo: queriam as tuas palavras para as silenciarem. Ficarias assim, sem literatura, sozinho, abandonado numa imensidão de rocha e areia, a sangrar da boca, mudo perante o infinito.
.

Sobre a poesia

Ele disse-me que "algures, no passado" tinha abandonado a poesia. Disse-me que tinha de a abandonar, que "o caminho era perigoso". Foi por uma questão de sanidade, disse. Tinha uma forma de dizer estas coisas assim, metida no meio de tiques com as mãos, gestos imprecisos que levavam a cigarrilha à boca num equilíbrio precário.
Eu, a ele disse-lhe o contrário, que procurava a poesia, que queria muito inundar-me nela, que sentia uma necessidade profunda de fazer versos... mas que depois, não os fazia. Como se adiar fosse parte já dos versos.
Ele percebeu, disse que era assim mesmo. Que a poesia não é nossa, é etérea, volátil e fodida.
Acedi. Calei-me. .

Regressar a casa

 
Do alto ou do fundo, de perto ou de longe, no passado, no presente ou no futuro, regressar a casa é sempre um mergulho infinito. Mesmo quando nos afastamos, seja no corpo, seja na alma, voltar para contar o que vimos, o que sentimos, o que imaginámos, ou somente para nos reencontrarmos com o silêncio primordial do ninho, recolher aos braços do amante, do amigo, da mãe. Regressar a casa. Nem que partamos de novo, outra e outra vez, o regresso, seja de que forma for, é o momento que nos define. Até porque só regressa quem um dia ousa partir.
.

Gato

Tem a cor do céu pouco depois de chover. Um cinzento que desvanece em morrinha. Os olhos ainda enevoados de juventude e um jeito de se esgueirar como a penumbra. Maleável como felino que é, serpenteando nos cantos, nos becos, nas esquinas da casa, em cada quarto entre cada objecto que de obstáculo transforma em brincadeira. Doce breve, macio como uma carícia. É gato quando está e é gato quando não está. Mia e ronrona, come e dorme, salta e aconchega-se a nós numa dança que nos vai teimosamente ensinando. .

o outono

chega o outono primeiro às árvores, diluindo as cores das folhas pingando nos cachecóis que vão aparecendo enrolados nos bósforos dos colos, aconchegados nos casacos há um ano guardados
e chega o outono às almas depois
na melancolia conhecida dos poemas
na ideia de que o adormecer se faz devagar e com vagar ao compasso do vento e do sopro dos ramos que se despem
aos poucos chega o outono em chuva hesitante e em ocasos mais curtos
chega às palavras e aos olhares aos choros e às esperas de sempre
aquelas de não se sabe bem o quê
mas que persistem na teima insondável do tempo
 
é isso
o outono chega e a espera é o seu perfume
.

O horizonte

O horizonte (linha imaginária diga-se) está mais ao menos a 5 km de distância de um observador que se encontre 2 metros acima do nível do mar. Curiosamente, para ele, ultimamente essa distância não lhe chega. Parece-lhe que no mundo não existem paisagens suficientemente amplas para lhe levarem a alma. Uma certa claustrofobia assombrou-lhe o espírito. Talvez o espaço, o infinito do universo fosse suficiente. Viu um programa sobre o cosmos em que a explicação do céu ser escuro à noite, advinha do universo se estar a expandir e que a luz da infinidade de estrelas existentes ainda não tinha tido tempo de nos chegar. E como o universo se continua a expandir, ainda mais tempo demorará para que toda essa luz cá chegue. Uma questão de tempo portanto. Se houver tempo (sabemos que não haverá que chegue) a luz de todas as estrelas chegaria ao nosso céu, e quando a nossa estrela se poria no horizonte, o céu estrelado da noite sê-lo-ia totalmente. Imagine-se isso, um céu nocturno a luzir por todo, não uniformemente mas como que coalhado de luz derramada pelo firmamento. Aí sim, teria horizonte que chegasse para lhe lavar a alma. Até lá, 2 metros acima do nível do mar, sem obstáculos pela frente, tem 5 km para respirar.
.

Marrocos

Viagem a Marrocos - Agosto 2012 (clicar nas fotos para visualizar)

Dia 1

De Albufeira a Algeciras (Espanha) de autocarro. Troca de veículo em Sevilha onde esperámos umas horas antes de nascer o dia, sob um calor intenso e alguns morcegos a voar nos tectos da estação rodoviária.
Chegada ao porto de Algeciras às 10h30 da manhã. Comprámos os bilhetes de ferry para Ceuta. Viagem rápida e tranquila envolvidos num nevoeiro digno de D. Sebastião.
 

Desembarque em Ceuta, continente africano pela primeira vez, eu que apenas o tinha visto há uns anos de Gibraltar. Ceuta, território espanhol, nosso em tempos idos, onde ainda prevalecem as nossas quinas, agora sob a coroa castelhana. O nevoeiro persistia mas sentia-se já um ar diferente. Pequena viagem de autocarro urbano até à fronteira com território marroquino. Aqui começou verdadeiramente a viagem. O nevoeiro dissipa-se aos poucos.



A fronteira é tudo o que se imagina: uma estrada ladeada pelo mar de um lado e por montanha do outro, não há por onde escapar, é seguir as pessoas, marroquinos a esmagadora maioria, com sacos de compras feitas em Ceuta. Filas de carros carregados, tudo a querer entrar em Marrocos. A lira e eu, de mochilas às costas chamamos rapidamente à atenção. Um homem vem ter connosco e encaminha-nos para a fila "correcta", mostrando-se prestável e dando indicações a um outro para nos entregar uns papéis para preencher. Percebemos depressa que é um "favor" que se paga, uns trocos para o homem que faz da vida entregar "mais cedo" os papéis que o polícia da fronteira dar-nos-ia de qualquer forma. Faz parte. Passa-se a fronteira a pé e chega-se a um descampado, sempre ladeado pelo mar e pela montanha.


Nesse descampado uma centena de táxis. Só homens e crianças. À nossa chegada logo dois ou três taxistas vêm ter connosco "taxi, taxi?". Sim, digo eu, para Tétuão. Pede 20 euros. Digo que não, que é muito (o guia routard, sempre no meu bolso, tinha-me dito que por 3 ou 4 euros fazia-se a viagem de 40 km). O guia insiste, que por 20 euros eu e a Lira iríamos num táxi para Tetuão, senão era preciso partilhar com outras pessoas, seriam 5 euros para os dois. Concordámos, partilharíamos o táxi. No entretanto, outro taxista meteu-se ao barulho e os dois pegaram-se verbalmente em árabe, zangados um com o outro. Já as nossas mochilas estavam na mala do táxi (mercedes dos anos 80, esmurrado, à imagem de todos os outros). A coisa resolveu-se, eles iam resmungando, nós íamos esperando por mais passageiros. Um homem, uma mulher de véu e uma grávida, sem véu, todos marroquinos. Lá fomos. A condução marroquina é toda uma teoria da física: onde há espaço é meter lá o carro, essa é a única regra. A meio da viagem a grávida diz qualquer coisa ao condutor. Pára-se no meio da estrada, ela sai e vira o barco. O resto da viagem passa-se sem peripécias.

Tetuão. Chegámos à cidade dois dias depois do fim do Ramadão e, pelos vistos, é feriado, dia de festa. O comércio fechado, muita gente na rua, descendo e subindo as ruas, em todas as direcções. Procuramos hotel, e nessa procura temos o primeiro contacto com Abdul, personagem que mais tarde terá um papel importante, e que procura ser nosso guia, recusamos. Deixamos as mochilas no hotel, quarto simples mas limpo. Seguindo o Routard vamos dar uma volta. Novo encontro com Abdul que novamente propões os seus serviços, nova recusa nossa, queremos experimentar a coisa sozinhos para já. Vamos até à praça do Palácio Real. Muita polícia e militares de vários ramos nas ruas. Cafés cheios... de homens, bebendo chá e café com leite. Está calor. Tentamos a primeira incursão na Medina. Percebemos que com o comércio fechado o labirinto é sujo e complicado, mas não há dúvidas, estamos noutro mundo, noutra forma de viver. Os olhares que nos lançam não são nem bons nem maus, são olhares. A maior parte dirigidos à Lira claro, mas ninguém a aborda enquanto eu estou perto (não por ser eu suponho, mas por ser homem vá). De 10 em 10 metros um fulano vem ter comigo a perguntar se quero guia, se quero "chocolate" ou se quero comprar alguma coisa. Vou recusando.


Fim de tarde regressamos ao hotel para descansar um pouco antes de sair para jantar. Apercebemo-nos de que o Routard não chega para nos guiar, que Tetuão é uma cidade complicada, que está suja e que hoje é um dia diferente que dificulta ainda mais o seu descobrimento.
Quando saímos para jantar novo encontro com Abdul, apercebe-se que procuramos onde comer, de novo presta-se ao serviço. Desta vez aceitamos, por que não? A escolha foi acertada. Levou-nos pela medina, algum comércio abriu de noite, começa a cidade a ganhar charme. Seguindo Abdul pelo labirinto do mercado reparamos que ninguém nos aborda nem nos chateia, ele vai contando umas histórias, mostrando uns edifícios, algumas portas de mesquitas pequenas e algumas escolas corânicas. Leva-nos a um restaurante "perfeito" em plena Medina, por trás do Palácio Real, cujo Rei virá em breve visitar diz-nos Abdul, daí tanta polícia e militares. Deixa-nos no restaurante, apresenta-nos ao dono e combina connosco daí a uma hora e meia para nos levar de volta ao hotel. Jantámos bem, tajines e espetadas e sopas e saladas marroquinas, tudo por quantias irrisórias. A viagem ganhava cor e nós respirávamos um pouco de alívio após umas primeiras horas complicadas. O chá de menta revela-se uma descoberta açucaradamente saborosa.



Findo o jantar Abdul lá apareceu como falado. Levou-nos ao hotel e combinámos com ele às 9h30 do dia seguinte para eles nos fazer uma visita pela cidade. Abdul ganhara dois amigos e até então zero dirhams (a moeda marroquina), disse-lhe que dependendo de amanhã lhe daria alguma coisa.
Fomos dormir, a primeira noite em África, calor e barulho na rua até tarde.

Dia 2

Nestes dois primeiros dias a hora supostamente mudava. O engraçado é que mudava apenas para alguns. Combináramos às 9h30 com Abdul mas ele chegou apenas às 10h30. Enquanto esperávamos por ele perguntei a duas pessoas as horas, tive duas respostas diferentes. A terceira pessoa a quem perguntei foi a Abdul, que me disse serem 9h30 quando eu pensava serem já 10h30. Ele disse-me que a terceira pessoa a quem se perguntava as horas é que tinha razão! Na verdade, é costume no fim do Ramadão haver um indefinição durante um ou dois dias quanto à hora certa. Confirmava-se que estávamos num outro planeta.
Com Abdul visitámos a Medina de Tetuão sem aborrecimentos. Pelo labirinto do comércio mostrou-nos mesquitas (apenas o exterior claro) e escolas corânicas, visitámos o curtume e vendedores de tapetes onde aprendemos lições sobre o regateio.







De Tetuão partimos para Chefchaouen. Viagem de 40 km a 7 num táxi por pouco mais de 5 euros.


Chefchaouen é uma cidadezinha azul e branca incrustada na montanha. Uma delícia para se visitar. Está também no coração da região onde mais haxixe se produz e logicamente muito artista tenta ipingir uns gramas aqui e ali, mas mais interessante é proporem visitas às "fábricas" do produto. Optámos por não aceitar esse tipo de convites, ficará para uma próxima vez, mas no ouvido ficou uma imagem bonita que alguns dos vendedores atiravam quando tentavam vender o seu produto: "Hey, tenho aqui algo para bronzeares a cabeça e a mente".
Pelas ruas azuladas o comércio trouxe-nos boas surpresas, uma livraria muito engraçada cujo dono também se chamava Abdul. À noite jantámos com um gato e uma vez mas o chá de menta acompanhou-nos a cada pausa.





Dia 3

De Chefchaouen partimos em autocarro para Fès, 5 horas de viagem. Pelo meio uma paragem numa estação de serviço no meio do nada com um sistema de alimentação engraçado. Uma banca de carne crua (um talho portanto), onde por alguns euros se compra carne picada com especiarias, e uns metros ao lado, outra banca com um grelhador, onde por mais alguns dirhams um homem grelha o que lhe trazemos e ainda nos oferece pão para acompanhar. Tudo saboroso para além de peculiar.


Até Fès percorremos regiões agrestes do interior marroquino, onde o termómetro andou pelos 40 e poucos graus.




Fès, cidade imperial, a parte histórica encafuada dentro de muralhas com cheiro a tempos idos. Do alto das ruínas dos túmulos da dinastia Merídina a vista sobre a cidade é impressionante. O labirinto da Medina é imenso e mais tarde perdemo-nos lá no meio durante umas horitas.




 











Na Medina visitámos, para além de nos termos perdido, o Palácio Mnebhi ainda antes de jantar. O resto ficaria para o dia seguinte.








Dia 4

Ainda em Fès, lançámo-nos de novo pela gigante Medina. Descobrimos os curtumes famosos, visão incrível com cheiro ainda mais incrível. As peles são colocadas em tanques com cal para perderem o pêlo, depois são despejadas noutros tanques onde misturam pigmentos naturais com excrementos para curtir e tingir as peles. É um trabalho manual e duríssimo, a vista é impressionante. Visitámos igualmente uma perfumaria natural, onde mulheres berberes produzem óleos, pomadas e perfumes a partir de frutos secos.









 De tarde partimos para Meknés, cidade que não estava prevista no nosso plano original mas que oda a gente nos aconselhou. Deixámos Fès para trás com a sensação de que valerá a pena nova visita.

Para Meknés fomos de combóio, pouco menos de 100 Km de distância, viagem tranquila. Almoço em Meknés





A conselho do dono do hotel onde ficámos, contratámos um guia oficial por 15 euros para visitar a cidade. Nourdine, guia profissional foi exactamente isso. Em 3 horas mostrou-nos o essencial da cidade com explicações interessantes. Meknés foi uma surpresa muito agradável e dos lugares que mais me agradou. Cidade também imperial cujas muralhas separam a cidade moderna, imperial e medieval.


Começámos por visitar o Mausoléu do Mulá Ismaïl, preciosidade arquitectónica, aberto a não-muçulmanos, com salão de reza.Os três elementos fundamentais: azulejo, gesso e madeira, tudo trabalhado à mão dos inícios do séc. XVIII.





Atravessando da parte Imperial da cidade para a Medina, passamos junto à Prisão dos Cristãos, projectada por um prisioneiro português a troco da sua liberdade. A porta de Bâb-Mannsour é das mais belas do mundo árabe.






Na Medina visitámos a Escola Corânica de Bou-Inania, criada no séc. XIV, de novo o azulejo, o gesso a madeira trabalhados artesanalmente.




Até ao jantar passeámos pela Medina da cidade, de novo o labirinto de comércios, de gente (com bom gosto uma delas) e de um fervilhar típico da região.



Meknés será um destino a revisitar numa próxima viagem.

Dia  5

Saída de Meknés de combóio até Casablanca onde a ideia era apenas almoçar e visitar a Mesquita Hassan II e partir directamente mais para Sul para Mazagão/El-Jadida. Infelizmente, depois de um bom almoço as visitas à Mesquita já tinham acabado, partimos para El-Jadida de combóio.

Em Mazagão fomos visitar directamente a Cisterna Portuguesa, edifício construído por nós no séc. XVI. Toda a cidade tem memórias da nossa passagem, do nome das ruas à muralha que ainda hoje fortifica o cento histórico. Tivemos dificuldades em encontrar um hotel, até que chegámos a um Palácio Andaluz, edifício lindíssimo com um quarto barato e disponível. Pousámos as nossas coisas e fomos jantar.





El-Jadida mostrou-nos o seu charme (e bom gosto uma vez mais), as muralhas portuguesas, o mercado, as especiarias, as tatuagens de hena e o pulsar de uma vila colada ao mar, conquistada em tempos e recuperada mais tarde, no fundo um cruzamento de civilizações. Regressámos ao nosso "palácio" andaluz perto da meia-noite. No quarto, já quase preparados para dormir a visita de algumas baratas (não há imagens) obrigou-nos a mudar de planos. Foi a primeira (e única) verdadeiramente má experiência por terras magrebinas. Lá negociei com o dono a devolução do dinheiro e saímos de novo, mochila às costas, à procura de hotel. Não encontrámos. Essa noite dormimos na estação de comboios.






Dia 6

De El-Jadida regressámos a Casablanca para, então sim, visitar a Mesquita Hassan II e deixar a experiência das baratas para trás. A Mesquita é a terceira maior do mundo. Artesãos de todo o Reino Marroquino foram contratados para trabalhar na construção da Mesquita. Toda a decoração é trabalho artesanal, e as imagens não dão a ideia de escala real. o Minarete ergue-se 200 metros acima do nível do mar. Como cereja no topo do bolo, conhecemos um casal espanhol na visita que nos deu boleia e dormida em Rabat. Marrocos revelava-se de vez uma moeda de duas faces, em que a da felicidade levava a melhor.





Em Rabat, depois dos nossos novos amigos ficarem em casa a descansar, visitámos o Mausoléu de Mohamed V e a torre Hassan. Fomos ver igualmente a Kasbah das Oudaïa, uma espécie de aldeia fortificada dentro da capital, com vista para o mar e com as casas pintadas de azul e branco, bebemos chá como sempre e mergulhámos na Medina. Jantámos com a Marijo e com o Roberto e dormimos numa cama limpa e perfeita longe de baratas e outros bichos.










Dia 7

Despedimo-nos dos nossos novos amigos e visitámos a Necrópole de Chellah entes de partirmos para Assilah, onde almoçámos peixe grelhado antes de ir para Tanger, última cidade da nossa aventura.







Em Tanger ficámos num hotel ao lado de uma mesquita dentro da Medina. Fizemos as últimas compras, demos uma volta pelas ruas da Medina, jantámos e fomos dormir... para ser acordados às 5 da manhã pelo chamamento da oração, que durou um bom quarto de hora!

Dia 8

Último dia. Derradeiras voltas por Tanger onde comprámos os bilhetes de ferry para regressar a Algeciras em Espanha, avistámos Gibraltar através da bruma persistente do estreito e fomos dizendo adeus a Marrocos. De Tanger ao porto são 40km e aí nova aventura: os bilhetes que compráramos eram afinal apenas para pessoas com carros, tivemos de nos meter num táxi ir à outra ponta do porto para que nos trocassem os bilhetes, enfim mais uma correria para chegar a tempo do ferry certo, porque em Algeciras tínhamos autocarro com hora marcada.






 De Algeciras até casa nada digno de relato aconteceu. África ficara para trás no mapa mas perto da alma. Marrocos foi uma viagem a um outro mundo, onde cada pequeno revés era compensado com descobertas e surpresas que ficam para sempre connosco. O sol tem um outro sabor, os olhares um outro peso e os cheiros outras dimensões. É curioso o contraste entre a aparência e a realidade do povo marroquino. A primeira abordagem é um pouco agressiva mas depois o trato é sempre baseado no respeito e o discurso feito olhos nos olhos. Os gestos são deliciosos, ao agradecer, ao despedirem-se, ao cumprimentarem-se. A paisagem variada, do mar à montanha, aos planaltos agrestes. As cidades caóticas mas ao mesmo tempo lógicas, baseadas na troca comercial, no frenesim. E depois os minaretes a despontarem em cada esquina, os chamamentos 5 vezes ao dia, os tapetes, as peles, as cores, os lenços, os gatos e as crianças.
Terra de onde veio uma civilização que nos deu muito durante séculos e terra por onde depois andámos nós nas nossas descobertas. A Marrocos voltaremos um dia, mais para Sul com certeza, ver o deserto e outras paisagens. Por agora ficámos pelo Norte e centro.