Para memória futura 10

As viagens Bruxelas-Porto-Bruxelas de carro, fi-las eu umas 3 vezes por ano, entre os meus 5 e 18 anos. Recordo as primeiras, feitas num Renault Espace, dos primeiros a entrar em Portugal. Toda a gente olhava para o carro como se fosse uma nave espacial. E era. Engolíamos estrada a 170 km/h nas longas autoroutes francesas. Paravamos nos restaurantes L'Arche que eu adorava pelo aspecto limpo e perfeito. Em Espanha, no calor arrasador do deserto de Castela, dormia o mais que podia.
Lembro-me dos vários envelopes com as diferentes moedas da altura, para trocar quando cruzávamos uma fronteira.
Mas dessas viagens o que mais me fica na alma é a música. O meu pai tinha um conjunto de cassetes audio que me transportavam para lá disto tudo. Dire Straits, Bruce Springsteen, Pink Floyd, Rui Veloso, O Rei Artur de Purcell, Mozart, Rolling Stones, Karmina Burana.
O clásssico dos clássicos nessas viagens, a música que colocávamos quando chegávamos ao Porto, a alto e bom som, era os Dire Straits "Sultans of Swing". Ainda hoje quando a ouço, fico com arrepios. O solo de guitarra no final é das coisas mais extraordinárias que ouvi até hoje.


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Álgebra

Crês que te avistam de um qualquer cimo, de um qualquer topo? Que te seguem, que te acompanham? Crês que te guiam por vezes, que te aconselham pela consciência? O que respondes?
Se desenhas gestos vazios e como recompensa tens a sorte de teres os olhos abertos e alguma poesia nos dedos, aproveita. Se por acaso calhares de criar grandes gestos com significado e como sina tens o azar da escuridão no olhar, arrisca versos nocturnos.
No fundo, no fundo, as palavras são álgebra, poderás ter a sorte de encontrar a fórmula do texto certo, na hora certa.
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Esperar-te

Amanhacera devagar e sobre o mar a neblina habitual toldava a vista das ondas. Na rua eram poucos os vultos e só a espaços um carro cruzava o semáforo. Esperei algum tempo a ver se vinhas, sabendo de antemão que não virias. Talvez não devesse esperar e, dessa forma, ser porventura surpreendido com uma tua aparição. Talvez esperar desfizesse nas contas do cosmos, a possibilidade real de vires, de me apareceres envolvida num desses teus cachequóis coloridos, de me olhares finalmente e falares alguma coisa. Mas cada um faz o que pode, e eu, em frente à rua quase deserta e ao mar nublado, podia esperar-te, e era o que fazia.
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Ferreira de Castro

por Filipe

Sapatos e mala de Ferreira de Castro. Um gigante mais que ainda só folheei. Um par de sapatos e uma mala: todo um ensaio de como andar por cá a respirar.
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Lendo

Na senda de recuperar alguns dos atrasos (como se isso fosse possível!), destilarei aqui algumas pérolas que Almeida Garrett escreveu em Viagens na Minha Terra, livro que comprei por um euro e meio no Jumbo e que me acompanha há uns tempos na mesinha de cabeceira. Li-o na escola numa outra vida e releio-o agora, estando quase a chegar ao fim, esperando pelo terminus da viagem e da história da Menina dos Roxinóis. Claro que sei como acaba, mas nunca se sabe, até virar a última página tudo é possível.


O que destaco em Garrett é o que me fica a cada letura de "um dos grandes": sabedoria, talento e limpeza. Sabedoria entrelinhas, em apontamentos, em afirmações, em orgulho e firmeza. Talento nas palavras, na construção do enredo, na capacidade imaginativa de certas frases. E limpeza na pureza da língua, na clareza de parágrafos escritos por uma voz livre de gaguez, rendida à literatura e à arte de sentir.


E depois há a "actualidade". Dir-se-ia que Garrett vive nos nossos dias. Basta lê-lo.
Fujamos depressa deste monturo. - É monótona, árida sem frescura de árvores a estrada: apenas alguma rara oliveira mal medrada, a longos e desiguais espaços, mostra o seu tronco raquítico e braços contorcidos, ornados de ramúsculos doentes, em que o natural verde-alvo das folhas é mais alvacento e desbotado que o costume. O solo, porém, com raras excepções, é óptimo, e a troco de pouco trabalho e insignificante despesa, daria uma estrada tão boa como as melhores da Europa.
Quando se fizer a lei da responsabilidade ministerial, para as calendas gregas, eu hei-de propor que cada ministro seja obrigado a viajar por este seu reino de Portugal ao menos uma vez cada ano, como a desobriga.
(tenho hoje a bossa helénica num estado de tumescência pasmosa!)
Se for homem é poeta; se é mulher, está namorada.
São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher namorada; vêem, sentem, pensam, falam como a outra gente não vê, não sente, não pensa nem fala.
Eu creio que as damas que estão mal informadas, e sei que os elegantes que são uns tolos; mas sempre tenho meu receio, porque enfim, enfim, deles me rio eu, mas poesia ou romance, música ou drama de que as mulheres não gostem, é porque não presta.
O que pode viver assim, vive para fazer mal ou para nõa fazer nada.
Ora o que não ama, que não ama apaixonadamente, seu filho, se o tem, sua mãe, se a conserva, ou a mulher que prefere a todas, esse home é o tal, e Deus me livre dele.
Sobretudo que não escreva: há-de ser um maçador terrível.




Oh! que existências que eram aquelas quatro! Esse frade, essa velha e essas duas crianças! E a maior parte da gente, que é gente, vive assim... E querem, quererm-na assim mesmo, a vida, têm-lhe apego! Oh, que enigma é o homem!




A tudo se habitua o homem, a todo o estado se afaz; e não há vida, por mais estranha, que o tempo e a repetição dos actos lhe não faça natural.



Iam a cair nos braços um do outro. A singela confissão da inocência ia ser aceite por quem, e como, santo Deus! Aquela palavra de oiro, aquela doce palavra que tanto custa a pronunciar à mulher menos arteira; que, adivinhada, sabida, ouvida há muito pelo coração, dita mil vezes com os olhos, nenhum homem descansa nem se tem por feliz, por certo de sua felicidade, enquanto a não ouve proferir pelos lábios - ; essa palavra celeste, que explica o passado, que responde do futuro, que é a última e irrevogável sentença de um longo pleito de ansiedades, de incertezas e de sustos - essa final e fatal palavra amo-te Joaninha a pronunciara tão naturalmente, tão sincera, tão sem dificuldades nem hesitações, como se aquele fosse - e era decerto -, como se aquele tivesse sido sempre o pensamento único, a ideia constante e habitual de sua vida.

As minhas janelas, agora, são as primeiras janelas de Lisboa; dão em cheio por todo esse Tejo.



É a Inquisição, são os Jesuítas, são os Filipes, é a reacção católica, edificando templos para que se creia e se ore, não porque se creia e se ora.



Coitados! Não contaram com os aperfeiçoadores, reparadores, fomentadores e demolidores das futuras civilizações que, para pôr as coisas em ordem, tiram primeiro tudo do seu lugar.
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A prazo

2011 e um atraso de uma vida, eu sei. Leituras, escritas, imagens, afirmações e possíveis negações, conclusões e premonições, desejos e promessas, exercicios de autismo profundo, psicoses, fantasias sexuais, fantasias não sexuais, amor, amizade, simulações de suicídio, fenómenos, silêncios e gestos. Tudo, para 2011 tudo isso e o seu contrário. Como tem sido até aqui. O Sol ainda brilha, mesmo se for por cima das nuvens ou do outro lado da Terra quando faz noite aqui. Mas o Sol é uma estrela a prazo. Tudo é a prazo. até o infinito.
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