A última carta

Um romance inacabado. "A última carta".


I

Lara,

Esta é a última vez que te escrevo.
Sinto o cheiro da terra e do silêncio a chegar. Sinto-o daqui desta janela por onde espreito o mar. O nosso mar que se estende no horizonte tal como se estende na memória que dele tenho, tal como te banha nessa mesma lembrança. Recordar é para mim uma necessidade. Sei, por isso, que estou a morrer, porque quando um homem só recorda e esquece o tempo que ainda não passou, desmaia da vida e desperta para a morte.
É para ti que escrevo agora que o fim se aproxima. Sim, o fim, pelos vistos estou doente. Disseram-me que tinha um problema no coração. Uns meses ainda, talvez um ano mas não mais. É difícil conceber a morte, sobretudo a nossa.
Mas não é disso que quero falar, quero falar de nós, de ti. Já lá vão muitos anos desde a última vez. Beijei-te e parti. Depois perdi-me. Escrevi-te muito, cartas e cartas, centenas de cartas, milhares de cartas nestes últimos anos, talvez procurando reencontrar-me na ausência de nós que criei ao partir. Mas nada, nenhuma resposta. Fizeste bem, fui eu que parti, que te beijei e parti, tu não me devias nada. Ao princípio ficava zangado, triste. Mas depois habituei-me ao teu silêncio, entendi-o. Admito até que com o tempo comecei a apreciá-lo, e essas cartas que não escrevias, essas respostas que não enviavas, faziam já parte de mim e da nossa história. Se tivesses escrito, se tivesses respondido não estaria aqui hoje certamente a escrever-te a última carta. Sim porque esta é a última carta Lara. Não vale a pena continuar a escrever-te. Estes próximos tempos serão os do meu silêncio também. Estarei contigo dentro de mim, lembrarei toda a nossa vida, queimarei em sonhos o que me resta de esperança. As poucas lágrimas que ainda posso ter secarão nos meus remorsos, nos meus fantasmas e na minha culpa. E desta vez, não te vou pedir perdão, fi-lo em todas as cartas do passado. Parti naquele dia. Não há desculpa, não há razão, apenas parti. Beijei-te e parti.
Lara, está na hora. Vou calar-me, cumprir o tal silêncio de nós por estas palavras escritas, juntar a minha mudez à tua de todos estes anos, seremos perfeitos uma última vez. Esta voz que foi até ti durante estes anos todos termina. Esta mão que treme ao escrever-te vai cessar. Estes olhos que choram ao ver o nosso mar vão fechar. Tudo em mim acaba aqui, nesta carta, contigo. A minha alma, o meu amor, tudo olhando para ti na contemplação que sempre me foste. Vou encostar-me ao que fomos e relembrar o que para sempre seremos...

Adeus.

Amo-te.

Pedro
II


A carta deslizou rápida pelo buraco escuro. Está ali, no negro, no silêncio, juntamente com outras vozes e outros gritos trancados em envelopes. Está ali naquele marco do outro lado da rua mas é como se já lá não estivesse. Uma carta que entra no marco do correio está já em viagem rumo ao seu destino. Lara será que já me ouves? Estou a caminho, uma última vez a caminho.
Vendi tudo depois de ter partido. Sim, tudo. A casa, o carro, a mobília, os livros. Tudo. Vim para aqui, para perto do nosso mar. Vejo-o da minha janela. Vivo neste pequeno quarto que dá para a marginal, fica perto do hotel onde ficámos uma vez, lembras-te? Tenho o suficiente para comer e dormir, sobreviver portanto. Só saio para levar as cartas ao correio ou para tomar banho na praia quando o tempo está bom, durante o resto do dia fico cá dentro a escrever, a ler, a gastar tempo. Vou preparar um chá, queres? Eu lembro-me que gostavas muito de chá, dizias que te aconchegava a alma e te aquecia o corpo. Importas-te que fume? Sim, voltei a fumar, mas pouco, três cigarros por dia, não mais. Fumo para matar o tempo. Conto os segundos. Um por um. Perco-me em momentos de ausência total do mundo, como se estivesse num coma profundo, apático e deslumbrado a olhar o nada e o infinito. Mas também penso em ti, penso muito em ti. Aliás, apenas penso em ti porque tudo me leva a ti. E mesmo nesses momentos de ausência devo certamente pensar em ti algures num canto do meu pensamento, algures no escuro e no silêncio do meu mundo.
A primeira vez que te vi foi na casa do Guilherme, lembras-te? Trabalhavas com ele, na mesma empresa de não sei quê, também não importa. Eu conhecia-o dos tempos da faculdade, era um bom amigo, talvez mesmo o único, um verdadeiro irmão, depois conto-te algumas histórias nossas. Eu sei que já tas contei muitas vezes mas como te disse na carta, recordar é para mim uma necessidade, acreditar ainda que alguma coisa aconteceu no meu passado para que ele não seja apenas ilusão, para que o vazio dos meus dias do presente não seja a única coisa que eu leve na lembrança. E é também uma forma de matar o tempo, antes que ele me mate a mim, um escape ao lento passar das horas e das nuvens no céu. Mas voltemos a ti, ao Guilherme, à primeira vez que te vi. Foi num jantar, convidou meio mundo, entre amigos e colegas de trabalho éramos uns cinquenta. Celebrava-se o seu aniversário

Pedro, esta é a Lara

Lara este é o Pedro, um amigo dos tempo da faculdade

foi assim, através de uma frase de circunstância, através de uma apresentação insossa e morna que te vi pela primeira vez. Sorriste ao cumprimentar-me, foi mágico, foi terrível. Conversámos um tempo, abordando as banalidades do costume mas pouco depois já me contavas uma das tuas aventuras simples sobre a beleza e a verdade das coisas. Contaste-me que quando eras pequena gostavas de ficar à chuva a correr e a saltar. Falavas muito alegremente e como se já me conhecesses há muito tempo, com pequenas pausas como que a saboreares as lembranças, levando o copo aos lábios, saboreando também a bebida. Eu ouvia-te, surpreendido pela agradável surpresa de te descobrir. Ouvia e imaginava-te nessa chuva e nessas correrias de criança. Imaginava-te encharcada, com os olhos a brilhar e esse teu sorriso enorme. Essa história nunca mais me abandonou, tatuou-se-me na memória para sempre. Uma noite, já depois de ter partido, depois de te ter beijado e partido, choveu imenso também. Sim, lembro-me bem, foi aí que percebi que te amava de verdade. Chovia, e só aí depois de te ter deixado é que entendi. Amava-te já antes disso, eu sei, e cheguei mesmo a dizer-to mas foi nessa chuva que tudo ficou claro. Há momentos assim, em que aquilo que sentimos dentro de nós se incendeia violentamente, se nos arde no espírito e nos queima até à superfície consumindo-nos a alma inteira. Porque nessa molha, no meio dessa água toda, eu relembrei essa tua história de menina e fiquei triste, fiquei triste por não te ter a meu lado para que ma contasses uma vez mais, assaltou-me a saudade do teu corpo e do teu olhar. Nessa noite de chuva eu queria-te tanto, desejava-te como nunca te tinha desejado. Cada passo que dava na tempestade era um pensamento em ti. Cada gota que me tocava o rosto era a ausência de um beijo teu. Foi então, que no meu desespero, caí de joelhos na praia agarrando a areia entre os dedos e as palmas das mãos, esmagando cada grão com toda a minha força. De costas para o mar, chorei. Chorei como nunca o tinha feito antes, despejei a alma nessa noite, nessa chuva, nesse mar. Dos meus olhos outro mar brotou, um mar de recordações, como se cada lágrima tivesse uma imagem tua, uma imagem nossa que aos poucos se me escapava e se escoava pela noite invernosa. Depois, vazio por dentro fui para um bar encher esse meu buraco. Essa cova profunda enchi-a de cerveja e vinho. Cheguei a casa bêbado e encharcado quando o sol já começava a nascer. Adormeci vestido e sujo sobre o sofá, agarrando numa mão a única fotografia que trouxe depois de partir e te ter deixado. Mais tarde dir-te-ei qual é. Quando acordei escrevi-te uma das muitas cartas que te enviei, uma carta cheia de dor de cabeça, de ressaca e de fantasmas ainda acordados pelo álcool. Escrevi

Lara, onde estás?

mas regresso agora ao dia em que nos conhecemos, aos anos do Guilherme. Entretanto terminei o cigarro e vou bebendo o chá com um cheirinho de whisky, não te importas pois não? O whisky acalma-me, adormece alguns fantasmas que teimam em assombrar-me o espírito. Não sei se te recordas mas tinhas um namorado na altura. Terminaste de me contar a história da chuva e foste ter com ele. Mais tarde na festa apresentaste-mo. Era um tipo sério, demasiado sério. Mal me apertou a mão para me cumprimentar percebi logo que não era homem para ti. Deambulava pela casa sem interesse em nada, o oposto de ti. Deixaste-o tempos depois. Eu também andava com alguém nessa altura, a Patrícia. Soube que casou há pouco. Estivemos uns meses juntos mas depois ela cansou-se e disse que sem um amor verdadeiro não podia viver. Disse-me que não sentia da minha parte os sentimentos necessários para continuar comigo, mas eu julgo que ela decidiu deixar-me quando percebeu que eu tinha mergulhado em ti. Falava-me insistentemente de um amor verdadeiro. Perguntei-lhe então o que era um amor falso. Não respondeu, disse-me que eu era muito criança e foi-se embora a chorar batendo a porta com força. É estranho, mas não é a quantidade de tempo que se passa com uma pessoa que faz com que a conheçamos melhor ou pior mas sim pequenos momentos que revelam a sua alma em alguns segundos eternos. Estava enganado a respeito da Patrícia. Senti que tinha perdido tempo com ela. Não era totalmente verdade porque nunca se perde tempo quando se está com alguém mas, vendo bem as coisas, nada ganhei durante aqueles meses. Os bons momentos desapareceram e apagaram-se depois daquela cena insólita de choro e da porta a bater com um estrondo. Das vezes que a vi depois disso, um certo mal-estar instalava-se entre nós. Olhar para ela era como olhar para algo absurdo, algo que não pode ser real. Mas deixemos a Patrícia por agora, ela há-de voltar a incomodar-nos outra vez. Passada a festa foi preciso esperar uns tempos até nos encontrarmos novamente.

III
Sirvo-me mais um pouco de chá e de whisky e fumo outro cigarro. Sim tens razão, fumo mais que os três cigarros que disse. Estou um pouco cansado hoje. Ter escrito aquela carta, a última, ter recordado um pouco da nossa história, desgastou este meu coração de velho. Sou um trintão com um coração octogenário disse-mo o médico. Foi o amor Lara, o amor que sinto por ti que me consumiu o órgão, que me saturou os sentimentos. E também a culpa, os remorsos. Sempre me disseste que eu carregava peso a mais na alma. Dizias que era o talento, as mentiras e ainda um pouco de mesquinhez que me pesava na vida.
O talento. Escrevi poemas desde pequeno e a única verdadeira leitora que tive foste tu, sim disse verdadeira, não por gostares ou não gostares deles mas porque os lias inteiros com honestidade, não creio que tenha talento, saem-me, é um respirar diferente. Adoravas os meus poemas ocos. Eras tu própria que os descrevias assim, ocos e vazios como conchas abandonadas no fundo do oceano, mas que gostavas deles assim. Porquê procurar profundidade à força, perguntavas. Dizias que cavar não era próprio dos poetas, que os poetas não precisavam de pás para descer ao mais fundo que o fundo.
Mentiras. Dizias que eu carregava mentiras antigas e que por isso eu era agora incapaz de mentir. Nunca percebi bem o que querias dizer com isso. Ou talvez sim.
Um pouco de mesquinhez. Tinhas razão nisso. Ao teu lado eu era um tipo preocupado com coisas sem importância. Andava sempre tenso enquanto que tu deslizavas calmamente no tempo que passava, eras como a brisa. Depois com o passar dos anos fui acalmando graças a ti.
Como vês, Lara, estou um pouco cansado hoje. Vou descansar um bocado, vou acabar de tomar este chá morno com whisky e olhar pela janela o nosso mar que está ali, como sempre, na sua condição inexplicável de lançar e recolher as ondas. A primeira vez que o vimos juntos o céu estava azul, limpo, perfeito. Chegámos a esta praia e descalços corremos para a água. Gelada, era Inverno mas estava um dia perfeito, perfeito de sol, perfeito de azul, de limpeza, de luz. Um dia puro. Deste-me um beijo, daqueles que só tu sabias dar, beijavas-me a alma inteira com a alma inteira, o meu espírito com o teu espírito e beijavas o meu passado, o meu presente e como vês agora, também o meu futuro. Era simplesmente mágico. Eras simplesmente mágica. Mas estou cansado, vou dormir um pouco. Vou-me deitar aqui no sofá mas primeiro deixa-me terminar o whisky morno, depois lavo a caneca. Deixa-me deitar, tirar esta papelada aqui de cima e estender-me. Olho o tecto com a lâmpada pendurada por um fio velho, as cortinas estão a ficar sujas e a janela está ligeiramente aberta. Ouvem-se as ondas e o vento num concerto suave de fim de tarde. Essa música entra e desliza por entre os poemas que se espalham no chão, pelos jornais que se amontoam num canto e pelos livros que descansam sobre a mesa. Os olhos pesam-me, estou cansado Lara, estou cansado


...que fazes aqui tão perto de mim? Queres saber por que parti? Por que te beijei e parti? Nem eu sei bem. A Patrícia? Que interessa a Patrícia? A Patrícia não teve nada a ver com isto, sempre foi um vulto, uma alma sem interesse… lá está ela a bater a porta e aos berros, histérica. Porque não me respondeste às cartas Lara? Não podias? E o Guilherme? Que é feito dele? Ainda ontem éramos uns putos de férias à procura de aventura. Sim, sempre fui um tipo triste com culpas antigas e mentiras ainda mais antigas... sim, mentiras. Não, não quero falar disso agora. Que fazes aqui tão perto, como um fantasma, Lara? Que me queres dizer? Perdoas-me? Como te amo, eu...

terei sonhado? Sabe bem acordar ao som do mar. Não me adianta sonhar porque mal acordo esqueço o que criei na imaginação, não resta nada a não ser imagens trémulas e indecifráveis. Quando era miúdo não era assim. Passava-se exactamente o contrário, sonhava e relembrava tudo durante o dia, chegava mesmo a acontecer sonhar o mesmo sonho durante semanas, e ele ia avançando, como um livro que se lê. Às vezes até estava ansioso por adormecer e ir ter com as minhas histórias. Aliás, da minha infância só me recordo dos sonhos que tinha. Agora nada, nada de nada, o sono é escuro e apenas um salto no tempo. É um pouco de morte, sim é isso, um pouco de morte. Embora às vezes sinta que tenha sonhado, que algo se passou nesse momento de trevas.
Lara. O teu nome é bonito. Duas sílabas, sendo a primeira tónica, dá-lhe brilho. É leve, desliza na boca como um sopro, um suspiro. Murmuro… Lara. Um pouco como o teu olhar, brilhante e leve. Lara. Escrevo-o num dos muitos papéis que semeei neste chão, desenhando cada letra devagar e com ternura, Lara. Digo-o em voz alta, Lara.
Depois da festa do Guilherme reencontrámo-nos em tua casa numa feliz coincidência. Querias vender o teu apartamento e eu por acaso procurava um na altura. Acabei por arranjar outro mas foi assim que deu para trocarmos os números de telefone. Agora lembrei-me, por falar em telefone, que nunca mais ouvi a tua voz, desde que te beijei e parti. A tua imagem tenho-a na fotografia, o teu cheiro dentro de mim, a tua pele na minha loucura mas a tua voz era impossível guardá-la porque não se guardam milagres. Sim milagres, a tua voz era um milagre. Pelo menos durante umas semanas foi um milagre. Lembras-te? Aquele tempo em que eu fiquei cego? Depois de um acidente de carro, bati com a cabeça no volante e perdi a visão. Se não fosse a tua voz teria morrido ou enlouquecido. Mas isto está muito confuso, regressemos à segunda vez que nos encontrámos, à feliz coincidência. Foi uns tempos após a festa do Guilherme. Passeava pelo centro da cidade, junto ao rio que tanto gostavas, quando vi um letreiro “Vende-se” na janela de um apartamento. Apontei o número e acertei dias depois uma visita com a voz anónima do outro lado da linha, uma mulher. Fui vê-lo numa tarde de Verão, estava um calor abrasador. Cheguei ao prédio e a porta da rua estava aberta. Entrei e subi as escadas. Depois de bater tu abriste. És linda, relembro agora, vejo-te na minha lembrança como se estivesses aqui à minha frente, viva, linda. Tinhas aquela beleza que dói, que deixa um homem de rastos. São traços simples, suaves, infinitos. Olhei-te e apaixonei-me, ali, naquele abrir de porta, naquele teu sorriso, na surpresa indescritível que foi encontrar-te. Na festa do meu amigo não tinha reparado bem em ti, na tua beleza. Tinha-me já, é certo, perdido dentro de ti na história da chuva, mas o teu brilho não me tinha então ofuscado como o fez nessa tarde. Tinhas o cabelo solto, levemente ondulado sobre os ombros. Estavas com uma saia curta vermelha que assentava sobre as tuas pernas morenas e brilhantes e vestias uma camisa branca que desenhava a curva do teu peito. Estavas linda. Disseste

Pedro, que tal? Já sabia que eras tu, reconheci logo a tua voz ao telefone!

és assim, imprevisível, alegre. Já não me recordo o que respondi mas deve ter sido uma palermice qualquer para não variar, ao pé de ti ficava sem jeito, desastrado. Lá entrei, o apartamento já estava vazio, tinhas feito a mudança há pouco. Ao guiares-me pela casa contavas um pequeno episódio sobre cada divisão, sobre cada cantinho do teu lar, e de como tinhas um dia escorregado no corredor, como uma vez viste o vizinho a saltar da janela por ser sonâmbulo, como perdeste uns brincos na banca da cozinha... E eu lá ia ouvindo mergulhado em ti e na tua voz e no teu olhar e no teu corpo. Acabei por não querer o apartamento, era pequeno para mim, eu nesse tempo precisava de espaço. Agora não, como sabes vivo neste pequeno estúdio mesmo em frente ao nosso mar, estou agora na cozinha a lavar a chávena do chá. Mas isso não interessa. O que sei é que foi a partir desse dia que nunca mais me abandonaste a alma. Iniciámos uma relação de amizade, com alguns almoços, que depois aprofundámos com alguns jantares e idas ao cinema e conversas até de madrugada em cafés escuros da cidade. Falávamos de tudo, desde poesia às nossas profissões. Numa dessas noites intermináveis convidaste-me para ir a tua casa. Saboreávamos uma cerveja e conversávamos sobre música, quando sentada no chão da tua sala, olhaste-me nos olhos e perguntaste-me se eu me sentia atraído por ti. Endireitei-me no sofá e respondi que não. Levantaste-te e voltaste a perguntar. E eu respondi mais uma vez que não. Chegaste mais perto de mim e repetiste a pergunta novamente. Neguei pela terceira vez. Beijaste-me e eu disse sim. Regressaste ao teu lugar em silêncio fixando os teus olhos enormes em mim. Sentado no sofá disse sim mais três vezes. Sorriste a cada vez que o disse com esse teu sorriso mágico. Nessa noite não se passou mais nada, retomámos a conversa e a cerveja e mais tarde acabei por dormir no teu sofá. Na manhã seguinte quando acordei já tu tinhas saído. Sobre a mesa deixaste um papel que dizia

eu também
escrevi muito nesse dia, muitos poemas ocos. Tenho-os aqui comigo agora, reescrevi-os numa madrugada solitária e fria, reencontrei-os bem no meu fundo, no poço da minha memória, pois eles tinham-se perdido quando te beijei e parti, abandonados por mim. Tenho-os aqui escritos em papéis soltos, espalhados pelo chão. Queres que os leia? Não vale a pena, pois não? A primeira vez que te li um poema meu estávamos os dois um pouco bêbados. Foi numa passagem de ano, era também de madrugada. Lembro-me bem, estavas com aquele vestido preto que eu tanto gosto. Não sei porquê mas nós homens ficamos doidos quando vocês usam vestidos pretos, talvez seja a ideia inconsciente do luto, da morte, da provocação, sei lá... Somos todos um pouco pervertidos. Mas tu Lara com aquele vestido, meu Deus!... com aquele vestido ainda mais terrível se tornava a tua beleza. Beijava-te já no elevador do hotel quando me pediste um poema, agarrava-te os seios sob a seda negra do vestido quando insististe para que te lesse um dos poemas escritos nesse dia do teu papel do
eu também
entrávamos abraçados no quarto quando me obrigaste a parar para ler, e eu li, vasculhei nos meus bolsos e saquei os rascunhos amachucados e li ofegante e desorientado por momentos

sabes bem que um dia destes
o amor há-de ser
uma tarde quente no deserto dos meus versos

sabes bem que uma noite destas
o carinho há-de ser
a sombra do vulto que te abraça

sabes bem que na eternidade
a ternura se mistura
com as cinzas do que sonhaste

e li, e reli mil vezes como me pediste enquanto te despias, olhando o teu corpo nu coberto de penumbra, com o vestido a cair no chão, com o leve brilho do teu peito firme a revelar-se lentamente, com a luz ténue da tua pele morena a deslizar pelo ar tranquilo, e continuei a ler Sabes bem enquanto te aproximavas e me tiravas a gravata que já estava solta que um dia destes O amor e me desabotoavas a camisa há-de ser Uma tarde e me beijavas o pescoço e o peito quente no deserto dos meus e me abraçavas e arranhavas levemente as costas versos Sabes bem que uma noite destas O carinho há-de e me desprendias as calças e o resto e me deitavas sobre a cama ser A sombra do vulto que te abraça e me fazias amor com os olhos fechados de prazer e dizias para que eu lesse, que não parasse de ler mesmo se o papel já se tinha perdido nos lençóis, para que eu lesse no teu corpo o resto do poema oco Sabes bem que na eternidade A ternura se mistura e quase que imploravas para que eu lesse sempre e para sempre Com as cinzas do que sonhaste e eu li, li até cerrares ainda mais os olhos de prazer, e reli até não poderes mais cerrar os olhos, li até adormeceres sobre mim, alagada em suor e em beleza e li enquanto dormias. Foi a única vez que adormeceste logo após o amor.

Importas-te que vá despejar o cinzeiro? Aliás, daqui a pouco vou ter de sair para comprar um maço ou dois, mas não te preocupes, levar-te-ei comigo, é da maneira que olharás também o nosso mar. Mas para já ainda não vamos sair, para já estou aqui contigo, connosco. Estou bem aqui. Deixa-me voltar ao dia em que escrevi muitos poemas ocos, o dia em que me deixaste o papelinho a dizer

eu também

foi uma manhã estranha essa. Ali estava eu, sozinho em tua casa, sentado no sofá com o papel do eu também na mão, olhava para a janela por onde entrava uma luz imensa, vagueando na lembrança do beijo da noite anterior, ainda em dúvida sobre se tinha sido um sonho ou realidade, recordando o teu sorriso e os teus olhos sobre mim. Procurei papel e caneta, fiz um pouco de café e sentei-me à mesa de vidro que dava para a varanda. Escrevi

o desejo não é mais que um beijo
mergulhado num sorriso e num olhar nocturno
relembrado depois na luz duma manhã
nos reflexos e nas sombras de um poema
nas curvas estreitas de um verso
nos abismos e covas de uma palavra
na imensidão de uma letra

e na solidão tranquila
reveste-se de esperança e
é eterno

depois fui ao teu quarto, onde vi o lençol branco desfeito em ondas e remoinhos de linho, sobre a almofada uma camisa de dormir despreocupadamente pousada, no ar um leve perfume a noite fresca, o da tua pele que viria a descobrir mais tarde, à cabeceira um livro aberto pousado ao contrário e um candeeiro antigo e a tudo isto se juntava a simplicidade e nada mais. Eu olhava deslumbrado como quem olha o oceano pela primeira vez ou como quem escuta o vento numa tarde de Outono. Regressei à sala, à mesa e aos poemas ocos que escrevi, uns atrás dos outros até à hora de almoço.

IV
Vamos então sair Lara? Vou buscar os tais maços de tabaco, espera um pouco, é só pegar no casaco e num cachecol, sim, porque conheces bem a nortada que rasga aqui a costa, como pequenas lâminas que arranham levemente a face e lacrimejam os olhos com o frio. Mas ao mesmo tempo obriga a aconchegarmo-nos por debaixo da roupa, a concentrar o calor em lembranças, faz-nos sentir vivos. E tu Lara? Estás viva? É estranho mas aquele sono de há pouco deixou-me uma sensação esquisita na alma. Devo ter sonhado mas não me recordo. Mas vamos lá fora comprar os cigarros e espreitar o nosso mar. Lá está ele, ali do outro lado da rua, estendido até ao horizonte onde se erguem aquelas montanhas gigantes de nuvens. Recordo agora as tardes que passámos nestas praias, e claro, fere-me mais uma vez como uma faca na alma a imagem da tua beleza terrível, o teu corpo moreno e brilhante desenhado ao sol, o teu rosto e cabelo, os teus braços e o teu peito, a tua cintura e pernas. Mas não era propriamente o teu corpo que me entrava pelos olhos como relâmpagos, era antes o teu deslizar pela areia, o teu olhar imenso que engolia o oceano inteiro e sobretudo aquele teu sorriso, inundado em sal, cintilante, infinito e que tu soltavas alegremente a cada mergulho nas ondas. Deixa-me sentar aqui neste banco a olhar, deixa-me então misturar isto tudo com as lembranças e recordações do passado, com a esperança de te sentir viva, de nos sentir vivos outra vez. Beijei-te e parti numa noite de chuva Lara, e apesar das milhares de cartas que te enviei depois, nunca te cheguei a explicar porquê. Talvez esteja na hora de o fazer. É certo que será por pensamento, mas que local existe nesta vida mais honesto e verdadeiro que os abismos da nossa alma e as escarpas do nosso espírito? O difícil nisto Lara, é dizer-te a verdadeira razão pela qual parti. É que nem eu a sei verdadeiramente. Na véspera, se te recordas, passámos a noite juntos em tua casa. Lembro-me de te ver a olhar a noite pela janela como fazias sempre depois do amor. Tirando aquela vez no hotel nunca adormecias logo. Levantavas-te nua e leve e procuravas uma janela. Nunca te perguntei porquê, simplesmente ficava a olhar-te ou então adormecia. Talvez não haja explicação, tal como agora. Tal como tu te levantavas, eu decidi partir nessa noite de chuva. Juntei algumas coisas num saco, fui ter contigo, beijei-te e parti. Depois mais tarde já aqui junto ao nosso mar, vendi tudo o que tinha lá, a casa, o carro, os livros, foi o Guilherme que tratou de tudo. É um irmão para mim, pedi-lhe e ele fez, sem perguntas, sem hesitar. Fê-lo porque sabe que eu faria o mesmo por ele se mo pedisse. Cumplicidade Lara, só contigo e com ele pude sentir isso. Eu sei que não te estou a contar tudo. Talvez nem nos tais abismos da alma nem nas escarpas do espírito te possa contar tudo, pelo menos por agora. Talvez haja um lugar onde o possa fazer, sem medos, sem remorsos, sem culpa nem mentiras. Nos versos quem sabe?

Sim, talvez nos versos. Ou nem mesmo aí, porque se calhar nem eu sei bem porque te beijei e parti. Fazemos coisas por vezes porque nos é ditado por dentro sem sabermos por que voz. E há tantas vozes por dentro, como saber quais seguir? Mesmo agora que recebo o troco do tabaco, o que faz com que a minha mão se abra e receba estas moedas e as leve ao bolso? O que faz com que cada trago do cigarro aconteça e o que faz com que eu veja a brasa a recuar para mim, até à beata presa por entre estes dedos? Estes dedos que te desenharam mil vezes no escuro das nossas noites. Lara, meu amor, que história é esta a nossa que não se cumpre? Ainda tenho tanto para nos recordar antes de me calar de vez, e tantas coisas também para te contar desta minha solidão. Tenho encontrado algumas pessoas nas minhas saídas por aqui. Sim, vou saio de vez em quando, passeio ao lado do mar ou entro num café não mais que isso. Mas encontro gente e converso com alguns. Gente que me povoa as noites sem ti, que contam coisas. Tanta gente que tem coisas para contar. Muitas delas também partiram de um outro lugar e muitas delas como eu recordam. O presente tornou-se a visita da memória para eles, mesmo se a semeiam de uma qualquer imaginação que vai moldando novas memórias de coisas que afinal nem aconteceram. Mas o que é isso "de facto"? Ao tornarem-se lembrança é como se tivessem mesmo acontecido. Será a nossa história assim? Alguém nos escreve para que possa ser verdade? Lara, minha Lara, estou de novo um pouco cansado hoje.

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Sophie


Já lá vai algum tempo mas a Sophie é a Sophie. A ideia de uma ideia de uma ideia de uma mulher. A simulação de uma paixão é uma paixão em si. O amor da ilusão, a ilusão do amor, a imaginação do amor, o amor da ficção, a encenação do amor. Todos esses jogos, esses conceitos, essas metáforas. Até numa mentira existe a verdade dela o ser.

Ameno

Clima ameno dizem. Por vezes lembra-se e desenha uma supresa em forma de chuva repentina ou de vaga de calor explosiva. Ou um frio de quebrar ossos. Ou um vento a insistir nos penteados.
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escrever versos

teimas na glorificação de um qualquer desalento
essa ideia romântica de que numa queda
te encontras a ti mesmo
e apesar do tormento julgas aí nesse preciso momento seres tu próprio
e não outro que por ti viverá
como se para seres poeta te bastasse simular uma pose

sabes bem que não
ser poeta nem é ser mais alto nem maior do que os homens
é somente escrever versos
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Do fatalismo

Dos textos que não escrevo há um de que gosto particularmente. Outros nem por isso. Sei que nisto de andar por cá sem escrever é apenas o adiar do inevitável. Pressinto que no exacto momento antes do Apocalipse me obrigarão a escrever tudo o que não escrevi. Como aquela história, já não sei de quem (Llorca, Marquez?), de um homem em frente a um pelotão de fuzilamento que pede o desejo de viver não sei quanto mais tempo (um dia mais, ou anos, não me recordo). As balas imobilizam-se logo após os disparos e todo o universo estagna, esse homem incluído. E ele vive o tempo a mais que pediu, assim mesmo, de frente para o pelotão e as balas imóveis no ar. Quando finda o tempo desejado, tudo arranca de novo e as balas cravam-se nele, matando-o. Do que me lembro, e é pouco, resta apenas a ideia da inevitabilidade, de um fatalismo profundo mas que de tanto o ser, se esvaziou, nem dramático é.
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Chove

Chove. Esqueci-me da chuva. Ou esqueci-me de como se escreve. Se soube alguma vez? Julgo que sim. Na inocência sabem-se as coisas todas e a inocência só se perde quando nos deparamos de novo com ela e constatamos que não é nossa. Chove sempre. Algures. Somos inocentes algures.
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Para memória futura 6

Para além do sonho inato de querer ter sido jogador de futebol, ainda por cima tendo nascido em 1980, ia mesmo a tempo de participar no França 98 com 18 anos (embora a nossa Selecção não tivesse ido) e vencer aí a prova máxima do futebol, o primeiro sonho do que "queria ser quando fosse grande" era ser astronauta (algo igualmente comum penso). Julgo que o sonho nasceu quando tinha 7 ou 8 anos e em Bruxelas fui ao IMAX (na altura o maior écrã de cinema da Europa) ver um documentário sobre a vida na falecida Estação Espacial MIR. Recordo que o écrã da altura de 5 andares (ou algo assim), com aquelas imagens do breu do universo semeado de estrelas, daquele azul da Terra a ocupar metade do firmamento, do flutuar dos astronautas no silêncio profundo do espaço, da Lua gigante e de toda aquela imensidão, tudo isso me arrebatou para a vida. Com o tempo, crescendo na idade, o sonho foi-se desfazendo: era português, era preciso muita física e matemática, o sonho não era para mim. Ficou o deslumbre e alguma literatura de ficção-científica. Ficou também, por vezes, uma pausa em noites mais calmas e limpas a olhar o céu numa solidão que ainda hoje me apazigua. Com o infinito, uma espécie de vertigem para lá de mim e uma sensação inexplicável de que se há coisa que eu abraçaria sem hesitar seria uma viagem até "lá em cima" e deixar-me "cair" e "cair" mais fundo, até quase tocar o "fim". Adormecer no cosmos.
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Superstição

Saí de casa de manhã. Voltei atrás por me ter esquecido de uma coisa. Ela perguntou, esqueceu-se de alguma coisa foi? Respondi, foi sim. Então olhe-se ao espelho para dar sorte, disse ela. Olhei-me ao espelho e saí. Nisto das superstições nunca se sabe, e ela que é lá da Ucrânia deve saber mais que eu.
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